A narrativa do descontrolo

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Há narrativas que são criadas e empoladas para afastar dos holofotes problemas reais que não estão a ser resolvidos ou que não se quer resolver. É o que está a acontecer em Portugal. Neste país, onde os preços da habitação continuam a aumentar e onde as casas são incomportáveis para grande parte da população, onde continua a haver falta de resposta no nosso SNS, onde há falta de professores e de condições na nossa escola pública, onde o investimento em ciência é dos mais baixos dos últimos anos, onde os atrasos no PRR põem em causa tantos investimentos, o Governo escolhe iniciar o seu mandato a fazer da imigração a grande causa de todos os problemas do país.

Esta narrativa não é nova: a ideia de que há um absoluto descontrolo da imigração e que estamos perante uma invasão que tem de ser contida tem sido a narrativa da extrema-direita e dos grupos de ódio nos últimos anos. A novidade, aqui, é esta narrativa ser totalmente adotada pelo partido que está no Governo, que apresenta um conjunto de iniciativas para resolver este suposto problema - incluindo tornando a nossa Lei da Nacionalidade muito mais restritiva e impondo obstáculos ao reagrupamento familiar. Iniciativas estas que levantam muitas preocupações constitucionais, e até éticas, de salvaguarda dos direitos das pessoas, das famílias e das crianças. Claro que há exceções para as restrições: para imigrantes altamente qualificados e para vistos gold, o que é ainda mais gritante em termos de discriminação.

É sempre curioso ver partidos que se dizem abertamente defensores da família tornarem a vida de tantas famílias e de tantas crianças mais complicada e difícil.

Há dúvidas sobre a importância de garantir que as famílias têm as condições para se juntar e fazer a sua vida em conjunto? Há dúvidas que a integração das pessoas imigrantes é muito mais fácil quando cá estão com a sua família? O direito a estar com a sua família é reconhecido no direito internacional, no direito europeu e na Convenção sobre os direitos da criança. E o nosso dever é para com todas as crianças.

Estas restrições não levantam só problemas constitucionais e éticos, levantam também problemas para a economia. É sabido que Portugal precisa de mão de obra imigrante para a sua economia e para assegurar os grandes projetos de obras públicas que tem previsto para os próximos anos. Mas o governo, normalmente tão preocupado com o impacto económico, responde apenas que as empresas terão de se adaptar… mostrando que, afinal, a preocupação do Governo não é verdadeiramente com a economia do país, nem com as suas empresas, mas em ocupar um espaço e uma narrativa. O problema é que essa narrativa tem consequências muito sérias e reais na vida de tantas pessoas.

À narrativa do descontrolo respondemos que o descontrolo está do lado do Governo, que perdeu o seu norte na decência e no respeito pelos Direitos Humanos.

Líder parlamentar do Livre

Diário de Notícias
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