O último livro de Antoine Compagnon, grande estudioso da Literatura (La Littérature ça paye, Équateurs, 2024), vem lembrar-nos de que, por muito que tenhamos em desprezo a Literatura, considerada um produto de e para sonhadores inúteis, devemos ter presente que é através de narrativas que codificamos a nossa identidade pessoal e a consistência das nossas políticas, que é de metáforas e de metonímias que se constroem as ciências e que mesmo a matemática não pode passar sem a realidade linguística das conjunções..Ele reconhece que lemos hoje menos e mesmo ele, Antoine Compagnon, não consegue hoje passar, como na sua adolescência, as férias de verão a ler “os grandes romances russos”. Contudo, ele domina a grande obra de Proust, como alguns de nós conhecem de cor os romances de Eça de Queirós..A leitura está em recuo junto dos jovens, diz-se. Na minha escolaridade, passada na província portuguesa de há 60 anos, raros eram os que se dedicavam à leitura e, tal como hoje, quem lia eram os filhos dos que liam. Talvez a ascensão social tivesse que ver, nesse tempo, com a leitura. Meu avô atravessara a serra, quando criança, para ir do Ameixial a Almodôvar terminar o Ensino Primário. Tinha a biblioteca de um republicano conservador, provavelmente maçon, livros de Brito Camacho para a sensatez e de Alain Kardec para a ilusão. Meu outro avô era médico e tinha uma biblioteca de tratados de medicina e romances do século XIX, entre os quais A Mão do Finado, esse livro feito em Portugal e falsamente atribuído a Alexandre Dumas, como alegada continuação do Conde de Monte Cristo..Na escola primária, no Alentejo, os filhos dos camponeses partilhavam a indiferença à leitura com os filhos dos proprietários rurais e éramos poucos: filho do juiz, que eu era, filho de joalheiro, que era o Janita Salomé, que respeitávamos ou amávamos os livros que nos contavam histórias e nos abriam as janelas para o mundo..O cinema e os folhetins radiofónicos satisfaziam a sede de romanesco que persistia nas salas e nas cozinhas e ainda não tinham surgido os écrans, as narrativas que vêm junto de nós sem nos exigir um monopólio da atenção..É contra esse pedido de atenção continuada, feito pela boa literatura, que vieram chocar, outrora a iliteracia generalizada das classes populares (se esquecermos a tradição anarquista, fundadora de coleções de livros e criadora de fados operários); e hoje, com o ensino mais universalizado e as necessidades sociais mais sofisticadas, foi na facilidade da comunicação digital e das narrativas visuais que veio esbarrar a literatura e já não são muitos os que precisam dela..Que fazer? Termos mais e melhores professores de Literatura (não esquecendo que o pleno domínio da linguagem é na literatura que se forma); termos mais e melhores bibliotecários: e trazermos as letras para a rua, num bom espírito de divulgação sem concessões..Alexandre O’Neill dizia que escrevíamos para Estocolmo, sem conseguir chegar a Trás-os-Montes. Creio que começámos a desmenti-lo. E nesse sentido devemos continuar.