A lição de Eça sobre a América
Em 1866 fundeava no Tejo o couraçado de duas torres blindadas USS Miantonomah, comandado pelo almirante John Colt Beaumont. A sua missão era a de levar uma mensagem de saudações do presidente Andrew Johnson ao czar Alexandre II. No ano seguinte, os EUA comprariam à Rússia o vasto território do Alasca pela módica quantia de 7,2 milhões de dólares.
Este acontecimento inspirou ao jovem Eça de Queiroz a escrita de um breve artigo, tendo o nome do navio como título, publicado na Gazeta de Portugal, em 2 de dezembro desse ano. São de Eça algumas das mais profundas meditações sobre a América efetuadas em língua portuguesa. Elas foram, para mim, uma espécie de boia salva-vidas na corrente impetuosa de disparates que submergiram os canais televisivos na noite eleitoral da esmagadora vitória de Trump nas eleições norte-americanas.
O destino dos EUA, nessa altura ainda oculto para a maior parte do mundo, foi enunciado pelo futuro autor de Os Maias, numa autêntica revelação intelectual: “Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe, nos mares (…). Entrevemo-la assim: movimentos imensos do capital; adoração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominação do individualismo; grande senso prático (…); uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios (...) e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar.”
A diabolização de Trump, disfarça o consenso fundamental da sociedade e sistema político dos EUA. A vitória do “deus Dólar”, hoje, reina sem limites, nem máscaras. A sociedade que construiu a primeira Constituição liberal moderna, baseada num saudável princípio de desconfiança antropológica, criando para isso um sistema de pesos e contrapesos, mergulhou, em 40 anos, na total promiscuidade entre as esferas pública e privada.
Os EUA são hoje uma democracia transmutada em plutocracia: o niilismo ético de uma “sociedade de mercado”, onde tudo se compra e vende, incluindo os presidentes (a Forbes registou 83 bilionários financiando Kamala, contra os 52 de Trump).
Para os órfãos europeus de Biden, que temem uma Europa abandonada pelos EUA, tenho uma boa notícia. O abraço de ferro de Biden à Europa, impondo uma guerra que poderia ter sido evitada, vai ser ainda mais apertado com Trump, intensificando um protecionismo que aumentará a migração das empresas europeias para os EUA. O colapso do Governo alemão é uma coincidência profética da tribulação que parece aguardar a UE, caminhando de olhos vendados para o pandemónio final da sua incompetência.