A Justiça em julgamento no Caso BES
A passagem do tempo e a dimensão relativamente pequena de Portugal e dos seus problemas criam, com alguma frequência, o hábito de desvalorizar os casos mais graves que temos de enfrentar.
No dia 11 de dezembro de 2008, um cavalheiro chamado Bernie Madoff foi detido no seu apartamento em Nova Iorque pelas autoridades federais norte-americanas. Foi acusado de engendrar e gerir um esquema de Ponzi (uma pirâmide em que angaria cada vez mais dinheiro a novos clientes para pagar aos que querem sair) que lesou milhares de investidores num valor estimado em 65 mil milhões de dólares.
Três meses e um dia depois, em 12 de março de 2009, Madoff, que estava a ser investigado secretamente pelo menos desde 1992, declarou-se culpado e foi condenado a 150 anos de prisão. Morreu atrás das grades, em 2021, quando mais de 40 mil das suas vítimas já tinham sido ressarcidas, total ou parcialmente, num valor global de 4,22 mil milhões de dólares.
O julgamento do Caso BES - que arrancou esta semana, dez anos depois dos factos e com Ricardo Salgado à cabeça - tem várias semelhanças. Tem um homem que se julgou, durante anos, acima da lei; tem lesados que, em muitos casos, perderam as poupanças de uma vida (como nos conta a excelente reportagem da Alexandra Tavares Teles, incluída nesta edição); tem um crime económico que chocou um país. Mas as semelhanças acabam aí.
A decisão do Ministério Público de compilar - infinitamente - milhares de elementos de prova num megaprocesso acabou por gerar um monstro impossível de domar e que demorou uma década a chegar a tribunal. Quando chegou, já quase tudo tinha sido noticiado e escrito em jornais e em numerosos livros, pelo que é, há anos, do perfeito conhecimento do contribuinte português que, ao contrário do Caso Madoff, teve de entregar mais de 8 mil milhões de euros para salvar o banco que Salgado construiu e fez colapsar. Pelo meio, também ao contrário do Caso Madoff, já quase toda a investigação tinha sido pontual e estrategicamente passada à imprensa.
Resta-nos falar do triste espetáculo da Justiça portuguesa a correr para julgar um homem que - dizem vários médicos e reconhecem os juízos de outros casos em que é acusado - já não está na posse total das suas capacidades mentais, que dificilmente reconhece onde está ou os nomes de familiares. O que se poderia ficar a saber com o seu testemunho se Salgado tivesse subido à barra do tribunal em 2015 ou 2016? Nunca o saberemos. Mas sabemos que hoje, em outubro de 2024, é também a Justiça portuguesa - aquela que os investidores internacionais tanto temem, mas pelas piores razões -, é a Justiça portuguesa que está a ser julgada pelos cidadãos e contribuintes.
Diretor-Adjunto do Diário de Notícias