A insustentável leveza da liderança de Kamala

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Duas sondagens nacionais mostram cenário favorável a Kamala Harris: 49/44 na NBC News (+5), 52/48 na CBS News (+4), em estudos feitos entre 13 e 17 de setembro (o primeiro) e 18 e 20 (o segundo). Confirma vantagem da democrata nesta fase da corrida, em diferença que muito provavelmente lhe garantirá a vitória no voto popular, falta saber se também no Colégio Eleitoral.

Há quatro anos, por esta altura, Biden liderava por +6,5%, há oito Hillary estava na frente por 1,9%. Para que um candidato presidencial democrata seja eleito, terá de ter uma vantagem na votação nacional na casa dos 3,5%/4%, embora tudo dependa da especificidade dos Estados decisivos.

E, nesse plano, tudo parece bem mais renhido.

Kamala tem um ligeiro favoritismo no Rust Belt, Donald Trump uma pequeníssima vantagem no Sun Belt, mas a diferença é tão curta que o que se destaca, a mês e meio da grande decisão, é mesmo a ideia de uma corrida muito equilibrada, com desfecho imprevisível.

Nate Silver, o “mago” da análise de sondagens, aponta no seu Silver Bulletin: “Em 16 anos de previsões eleitorais, nunca vi uma eleição tão próxima. As nossas médias de pesquisas em sete Estados indecisos - em ordem alfabética: Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Carolina do Norte, Pensilvânia e Wisconsin - estão dentro de dois pontos percentuais. Um erro sistemático nas pesquisas, ou uma mudança na disputa nas últimas seis semanas da campanha, poderia resultar num candidato varrendo todos esses Estados.”

Harris tem neste momento 2,2% de avanço no voto popular nacional (Biden a 42 dias da eleição de 2020 tinha +6,5%; Hillary tinha +1,9%). Na Pensilvânia, o mais decisivo dos Estados decisivos, Kamala tem uma vantagem ínfima de 0,7% na média de sondagens (RealClearPolitics), Biden tinha por esta altura +3,9%. Este duelo Kamala/Trump parece estar a ser mais renhido ainda que Biden/Trump 2020.

Perigoso, muito perigoso.

A perda dos Teamsters

Os Teamsters, sindicato que tradicionalmente apoiava os democratas, vai manter-se neutro no duelo Trump/Kamala. Isso mostra o problema da classe trabalhadora nos democratas. Pesquisa divulgada pelos Teamsters revela que Trump lidera entre os membros do sindicato por uma margem substancial.

O sindicato, que conta com mais de um milhão de membros a nível nacional, entrevistou os seus membros e descobriu que quase 60% planeavam votar em Trump em vez de Harris. Mas talvez mais notável tenha sido o facto de que, ao enfrentar Biden, que desistiu da corrida em julho, Trump na verdade perdia entre 44% e 36%.

Para Harris e os democratas, o não-endosso é um grande golpe. Mas ainda mais é o facto de os membros dos Teamsters estarem dispostos a apoiar Biden, mas não a ela. Sinal de que a sua candidatura pode acelerar o realinhamento de classe dentro do Partido Democrata, complicando o seu caminho para a vitória.

Um dos desenvolvimentos mais notáveis e duradouros da era Trump foi a mudança dos eleitores da classe trabalhadora para a direita, após décadas de apoio aos democratas a nível estadual e nacional. Se a sondagem Teamsters servir de indicação, Biden e a sua personalidade “Scranton Joe” podem ter abrandado brevemente a mudança para a direita da classe trabalhadora.

Um enorme desafio para Kamala. Harris conta com a criação de uma coligação que ignore os eleitores da classe trabalhadora que outrora constituíram a base democrata, contando, em compensação, com eleitores suburbanos altamente qualificados para se juntarem a ela em massa. Mas o problema desta abordagem é que o primeiro grupo é muito maior que o segundo. Para complicar ainda mais a situação está a necessidade de vencer o Colégio Eleitoral.

Kamala e os homens negros

Kamala Harris admitiu estar a trabalhar para ganhar o voto do eleitorado masculino negro. Em entrevista de campanha a três jornalistas da Associação Nacional de Jornalistas Negros, a candidata democrata fez notar:  “Acho que é muito importante não operar partindo da suposição de que os homens negros estão no bolso de alguém. “Os homens negros são como qualquer outro grupo de eleitores. Tem de se ganhar o voto deles e estou a trabalhar para isso, não presumindo que vou tê-lo porque sou negra”, acrescentou.

Os receios são fundados. Se os democratas mantêm um enorme avanço no voto negro em geral, as diferenças entre mulheres negras e homens negros são substanciais. As mulheres negras preferiram Hillary em 2016 e Biden em 2020 com percentagens acima dos 90%. Já os homens negros terão dado a Donald Trump cerca de 12% da preferência em 2016, perto de 20% em 2020. Antes da desistência de Biden, Trump teria perto de 35% do voto dos homens negros - algo que Kamala tenta agora reduzir substancialmente.

Depois há a questão da mobilização. Em Estados como a Geórgia e a Carolina do Norte, as sondagens mostram que Kamala Harris tem uma hipótese real de vencer. Mas só se os homens negros forem mesmo às urnas concretizar a intenção de voto que estão a revelar nas sondagens. Isso aconteceu com Obama em 2008 em grande número, em 2012 (já não tanto), mas menos em 2016, o que foi comprometedor para Hillary.

De acordo com sondagem Pew Research Center, realizada entre 5 e 11 de agosto, um pouco antes da Convenção Democrata de Chicago, Kamala liderava Trump nos negros por 77-13 (73-16 nos homens negros e 79-10 nas mulheres negras).
Medo de novo debate?

Kamala Harris quer novo debate a 23 de outubro, falta saber se desta vez Trump diz sim. Depois do grande triunfo no debate de Filadélfia, a democrata dá sinal de que sente que tem mais a ganhar com novo duelo com o adversário, embora Trump jure que ganhou “largamente” o primeiro debate, algo que nenhum estudo ou comentário independente aponta.

Esse novo debate seria na CNN a 23 de outubro, ou seja, a duas semanas das eleições. O debate já feito entre os dois foi na ABC, sendo que o duelo Biden/Trump de 27 de junho foi na CNN. Se não estiver interessado em aceitar, Trump terá já um argumento válido: já houve um na CNN, embora com Biden e ainda não houve na Fox New, ou na NBC ou na CBS.

“É demasiado tarde para organizar um novo debate. A votação já começou”, afirmou Donald Trump num comício na Carolina do Norte, referindo-se ao início da votação antecipada em alguns estados norte-americanos.

Trump pode beneficiar de guerra regional no Médio Oriente

O agravar da situação no Médio Oriente, com uma guerra que parece iminente entre Israel e o Hezbollah, é tema que certamente vai implicar contágio nesta reta final da eleição americana - sobretudo se houver mesmo, nas próximas semanas, uma operação terrestre israelita no sul do Líbano.

O discurso tremendista, a roçar o apocalíptico, de Trump pode, neste contexto, capitalizar: Donald tem dito que “com Kamala na Casa Branca, Israel acabaria em dois anos”, tem acusado Biden de fraqueza nestes temas e de permitir que, nos seus anos de Presidência, tenham ocorrido várias guerras.

Trump surge como “o salvador de Israel”, com ele haveria condições para o Governo de Netanyahu “resolver as coisas rapidamente”. Kamala, no oposto, fica numa situação complicada: como segurar o voto da esquerda anti-Israel e pró-Palestina mantendo o discurso de “os EUA vão sempre fazer tudo para garantir a segurança de Israel”?

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