A hora da Europa

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As celebrações dos 80 anos do Dia D fizeram-nos lembrar que ainda não estamos em condições de responder a uma questão fundamental: até onde estaremos dispostos a ir e o que estaremos dispostos a fazer, que sacrifícios a tomar para defender os nossos valores?

O que seremos capazes de fazer se os nossos valores e o nosso modo de vida ficarem, um dia, verdadeiramente em causa?

Sabemos mesmo responder a isto?

Antes de 24 de fevereiro de 2022, a maioria das pessoas não acreditava que a Rússia fosse invadir a Ucrânia. Mas isso aconteceu.

É provável que a Rússia faça isso a um país da NATO? Aos dias de hoje, a resposta será: ainda não. Mas é preciso olhar para o ainda.

Se a Rússia for bem-sucedida na agressão na Ucrânia, o que levaria Vladimir Putin a parar por ali, se sentisse vulnerabilidade militar, política, até psicológica, do nosso espaço NATO?

Como bem costuma avisar o chefe do Pentágono, o general Lloyd Austin: “Neste mundo imperfeito e cheio de ameaças crescentes, a dissuasão só pode ser feita através da força.”

É isso que temos de perceber.

Ao olharmos para os sobreviventes, hoje no limiar dos 100 anos (tinham 18, 19 ou 20 em junho de 1944), damos conta da imensa coragem, da bravura quase inimaginável que tiveram de ter para desembarcar em praias onde nunca tinham estado, sabendo da alta probabilidade de serem alvejados pelos nazis - os que antes não tivessem sido apanhados pelo mar.

Durante décadas, recordámos este momento épico a ver documentários ou filmes como O Resgate do Soldado Ryan (Steven Spielberg, 1998) ou O Desafio das Águias (Brian Hutton, 1968) ou O Mais Longo dos Dias (Ken Annakin, Andrew Marton, Bernhard Wicki, 1962).

Pensámos que esse momento ficaria guardado aí, num passado distante e inatingível, remetido à memória e à dimensão épica que só o cinema nos consegue transmitir.

Não é o caso.

Oito décadas depois, a Europa voltou a estar em guerra. Para quem ainda não percebeu vou escrever outra vez: a Europa voltou a estar em guerra.

Novo momento existencial

No discurso de sexta de manhã, na Assembleia Nacional Francesa, o presidente Zelensky lançou o aviso: “O que está a acontecer na Ucrânia pode suceder no resto do espaço europeu se a Rússia não for travada. É uma hora existencial para a Ucrânia e deverá ser também para a Europa, se não fizermos o que é certo.”

Nesse sentido, a analogia entre o Dia D e a resistência dos ucranianos ao invasor russo - parecendo exagerada num primeiro momento - faz todo o sentido. A dimensão da ocupação da Alemanha nazi de Hitler era muito maior no território europeu do que a da Rússia de Putin sobre a Ucrânia - mas o caminho e o que nele está causa, infelizmente, é similar e comparável.

Esperemos que não venha a ser ainda equiparado, num futuro próximo.

Precisamos da Europa

As eleições de hoje (ou melhor, que terminam hoje, uma vez que no todo dos 27 Estados-membros se estenderam entre 6 e 9 de junho) têm, por isso, um contexto muito especial.

“Esta batalha é uma encruzilhada para a Europa”, avisava Zelensky no Parlamento francês. A Europa “já não é um continente de paz”. O presidente ucraniano alertou para o regresso da “guerra, das deportações e do ódio” e não se coibiu de comparar Putin a Hitler.

Se achamos essa comparação exagerada ou se concordamos com ela não é, de todo, relevante. Porque a ameaça passou a estar cá.

Com o devido respeito por temas que são, obviamente, complexos e muito relevantes para a realidade dos 360 milhões de eleitores europeus - como o Pacto Migratório, a ativação dos PRR pós-covid, o acesso à habitação, a Inovação e o Conhecimento ou as transições digital e ecológica -, estas Eleições Europeias terão um tema dominante e crucial: como iremos, nos próximos anos, preparar a Europa para uma ameaça real de expansão da agressão russa, neste momento cingida ao palco ucraniano? Como iremos garantir a autonomia estratégica, de modo a criar uma estratégia de Defesa Europeia Comum, sem depender da capacidade da indústria militar norte-americana?

Se não formos capazes de responder a estas inquietações no espaço de cinco anos, a UE corre mesmo o risco de ver abaladas as fundações do seu fabuloso projeto de construção democrática.

A previsível ascensão de forças populistas e extremistas aumenta o desafio - mas não compromete o objetivo. A boa notícia é que o Brexit, claramente mais prejudicial a quem o provocou, foi vacina para outros países que poderiam querer seguir caminho idêntico, caso os britânicos tivessem tido bons frutos no divórcio com a Europa. Húngaros, eslovacos, polacos, outros nacionais de Estados-membros com fortes correntes antieuropeias não colocam, hoje em dia, a saída como hipótese real: preferem tentar mudar a Europa por dentro, mas percebem que não há nada melhor do que estar dentro dos 27.

Precisamos da Europa. Mesmo os que dizem não gostar dela.

Alargamento: preparar uma nova Europa

Para lá das mudanças políticas, espera-nos uma nova Europa: ditada pelo alargamento, um risco conjuntural, mas, acima de tudo, uma opção estratégica fundamental para dar resposta aos desafios geopolíticos decorrentes da ameaça russa.

Putin quer a desintegração da Europa. A Europa terá de responder, nos próximos anos, com mais uma demonstração de pujança e capacidade de atração, ao acolher no seu seio a Ucrânia, a Moldávia, a Geórgia e os restantes países da parceria oriental e dos Balcãs Ocidentais, que há mais anos aguardam pela entrada (Sérvia, Macedónia do Norte, Bósnia, o Kosovo, Montenegro).

Há riscos na entrada destes países? Claro que sim. Será necessária uma reforma institucional, a distribuição dos fundos conhecerá grandes transformações.

Mas os benefícios serão muito maiores: já imaginaram o que seria se Croácia (entrou em 2013), Bulgária e Roménia (2007), Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia e República Checa (2004) estivessem hoje fora do espaço europeu? O que isso significaria na projeção da ameaça russa no flanco Leste?

O alargamento promoverá um aumento da prosperidade e das oportunidades para os cidadãos e as empresas europeus, uma voz mais forte na cena mundial, uma maior diversidade cultural, o reforço da democracia, do Estado de Direito e dos Direitos Humanos. Acima de tudo, trata-se de um investimento na paz e na segurança na Europa.

Na semana passada, Portugal juntou-se a mais 11 Estados-membros numa carta conjunta à presidência semestral belga da UE apelando à convocação, em junho, da Conferência Intergovernamental para negociar as adesões da Ucrânia e da Moldávia. Apelamos conjuntamente à adoção dos quadros de negociação para a Ucrânia e a Moldávia pelo Conselho dos Assuntos Gerais, o mais tardar em junho, a fim de convocar conferências intergovernamentais com ambos os países até ao final de junho de 2024”, escrevem o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, juntamente com os seus homólogos da Alemanha, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Finlândia, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia e Suécia. Os ministros dos 12 Estados-membros consideram que “a abertura das negociações de adesão traria uma motivação adicional tanto para a Ucrânia como para a Moldávia”, nomeadamente considerando “a terrível situação no terreno na Ucrânia e a proximidade das Eleições Presidenciais e do referendo sobre a UE na Moldávia”.

Anteontem, no encontro em Paris, Macron deu a Zelensky a garantia de que a França fará tudo para acelerar esse processo.

A Ucrânia é a nossa defesa avançada

A Ucrânia tem sido a nossa defesa avançada. Está a lutar por nós.

Teremos, nos próximos cinco anos, de ser capazes de nos prepararmos para o resto. Ganhar escala, tomar opções, não fechar portas a Pequim, muito menos a Washington - mas conseguir seguir em frente sem depender dessas duas capitais.

Macron foi o primeiro a percebê-lo com clareza. Só que ele vai sair do Eliseu a meio desse ciclo de cinco anos. Têm de aparecer mais líderes europeus com a sua clarividência e determinação - Donald Tusk e Sikorski (primeiro-ministro e chefe da diplomacia da Polónia) têm dito as coisas certas. Precisam de mais aliados.

O relógio está a contar: chegou a hora da Europa.

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