A guerra na Ucrânia e a maquilhagem da contabilidade russa

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O esforço financeiro que a Rússia está a fazer devido à guerra obriga o Kremlin a ter dois Orçamentos de Estado. Um é um Orçamento oficial, falso, feito para mostrar à população russa e ao mundo as contas, naturalmente falsas, que escondem o esforço de guerra. O segundo “orçamento”, quase desconhecido dos cidadãos russos e da comunidade internacional, é um “orçamento” escondido, verdadeiramente, um esquema orçamental, uma fraude contabilística, esta sim que reflete a verdadeira situação da economia russa resultante dos custos financeiros da guerra.

Esta estranha e dupla situação orçamental russa tem origem numa legislação aprovada pelo Kremlin logo no segundo dia da invasão da Ucrânia em que Vladimir Putin obrigou todos os bancos russos a contraírem empréstimos para suportarem, financeiramente, os custos da guerra. O valor dos empréstimos contraídos pelos bancos russos é seis vezes e meia superior aos empréstimos oficiais assumidos pelo economia estatal russa oficial.

Este esquema, compreensivelmente, ilegal à luz das regras financeiras internacionais, obriga os bancos russos a “ajudarem” no esforço financeiro da guerra com empréstimos contraídos. Segundo Craig Kennedy, do site Navigating Russia, esta “ajuda” originou um crescimento da dívida pública russa em cerca de 70%, avaliada em 415 mil milhões de dólares o que equivale a 19,4% do PIB russo. Cerca de 73% do total da dívida pública russa foi efetuada junto dos bancos por grandes empresas e os gastos foram destinados, 10% para armas, 30% para custos de tecnologia e engenharia de guerra, 20 % para construção e transporte de estruturas de guerra e, finalmente, 10 % para refinação de petróleo.

Esta trafulhice orçamental está a provocar uma disrupção no sistema financeiro russo que em 2024 registou uma elevada inflação e a subida das taxas de juro que rondam agora os 22% . Esta situação tem naturais reflexos no PIB que está num acentuado declínio.

A dívida contraída pelo Kremlin junto dos bancos russos excede em muito os lucros que Moscovo obtém com a venda de gás e petróleo e é bastante mais elevada do que os empréstimos oficiais feitos pela Estado russo e conhecidos do grande público. Isto resulta num enfraquecimento das grandes empresas russas, como a Gazprom forçada a contrair empréstimos à taxa de juro de 22 % e que enfrenta uma situação difícil devido ao fim das exportações de gás para a Europa.

A atual situação financeira na Rússia está a deixar preocupado o Kremlin. O agravamento da dívida pública coloca o eventual perigo da necessidade de um resgaste no futuro o que, a realizar-se, seria equivalente a cerca de metade de todo o orçamento anual da Rússia.

Numa altura em que está em cima da mesa a possibilidade de negociações para ser encontrada uma solução de paz na Ucrânia, a má situação financeira da Rússia expressa no “orçamento” escondido é uma enorme fragilidade para Moscovo e uma vantagem negocial para a Ucrânia e os países que a apoiam.

A Rússia enfrenta, assim, um dilema. Quanto mais tempo a guerra se prolongar, maior será a possibilidade de se agravarem as suas contas públicas. Mas se a Rússia, no futuro processo negocial mostrar urgência na concretização de um acordo que ponha termo à guerra, dará uma imagem de fragilidade.

Nas negociações que se aproximam a Rússia deverá exigir o fim imediato das sanções que lhe foram aplicadas pelos países ocidentais, como modo de aliviar as dificuldades da sua débil situação financeira. Por seu turno a Ucrânia e os países que a apoiam deverão insistir na manutenção das sanções, um modo de manter viva a pressão sobre a Rússia e no seu débil sistema financeiro que corre o perigo de se agravar, substancialmente, com o prolongamento do conflito.

Nas negociações que se aproximam, em cima da mesa estará a possibilidade de a Ucrânia poder entrar na União Europeia a curto ou médio prazo, mas uma impossibilidade total de integrar a NATO. É possível que, futuramente, uma força de interposição da União Europeia e da Grã-Bretanha possam ocupar-se da vigilância e respeito pelo desenho da nova fronteira estabelecida entre a Ucrânia e a Rússia. Mas, até ao momento, não existem certezas de quais serão os limites dessa nova fronteira e que territórios irá contemplar.

Mas uma realidade estará, certamente, presente nas negociações. A maquilhada, frágil e escondida situação financeira da Rússia será, seguramente, uma mais-valia negocial que a Ucrânia e os países que lhe dão apoio não deixarão de explorar.

Jornalista

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