A guerra dos patos coxos

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Faltam dois meses exatos para Joe Biden deixar a Casa Branca e já se percebeu, com o caso dos novos mísseis ucranianos, que o presidente americano não se reconhece na figura do lame duck, à letra “pato coxo”, a expressão que se usa nos Estados Unidos para descrever o político de saída, que já tem um sucessor eleito e por isso se torna irrelevante. Depois de a Ucrânia ter começado ontem a disparar os ATACMS de fabrico americano contra a Rússia, ficou evidente que Biden finalmente decidiu ceder às pressões de Volodomyr Zelensky. A guerra na Ucrânia, que dura há 1000 dias, entra assim numa nova fase que condiciona o que vai fazer Donald Trump depois de tomar posse a 20 de janeiro.

O conceito de pato coxo geralmente aplica-se a um político desacreditado, também derrotado, que espera apenas pelo momento de sair de cena. Por vezes, surpreendentemente, um pato coxo decide continuar a governar até ao último dia, usando da legitimidade constitucional.

Foi o que fez George Bush, em 1992, pois perdeu as Presidenciais para Bill Clinton, mas mesmo assim ordenou a invasão da Somália, uma operação humanitária que correu mal. Ninguém se lembra da visita de Bush a Mogadíscio, mas ficou na memória as imagens do corpo de um soldado americano arrastado por milicianos somalis. Clinton, já na Casa Branca, depressa deu ordem de retirada.

Associar Biden e Bush é um erro por várias razões, apesar de ambos insistirem em moldar a política externa até ao fim. Biden não perdeu as eleições, simplesmente foi forçado a não se recandidatar pelo seu próprio partido, desconfortável com as suspeitas sobre o estado de saúde do presidente. E se a vice-presidente Kamala Harris perdeu a 5 de novembro para Trump, Biden tem consciência de que, no seu caso, nas eleições de 2020, venceu Trump por sete milhões de votos. É evidente que o presidente não se vê como um pato coxo. E que quer ser presidente enquanto o mandato durar. E escolheu a guerra na Ucrânia como prioridade destas derradeiras semanas, ele que sempre se interessou muito por política externa, mesmo quando era ainda senador.

Ironicamente, é Trump que fica, em teoria, fragilizado. Há aqui uma espécie de inversão do paradigma do pato coxo. Apesar de eleito, Trump só é presidente depois de 20 de janeiro. Até lá, pode telefonar a quem quiser, seja o ucraniano Zelensky ou o russo Vladimir Putin, até pode nomear a sua futura equipa para o Departamento de Estado e o Pentágono, e até pode prometer soluções para a guerra na Europa, mas não manda nada.

De certa forma, sofre a frustração que sentiram, por exemplo, Abraham Lincoln e Franklin Roosevelt, eleitos em 1860 e em 1932, em situações de grave crise. Um teve de assistir, impotente, à secessão de vários Estados, e o outro esperar para finalmente aplicar o New Deal.

Na época, a tomada de posse era no início de março, quatro meses depois das Presidenciais! Hoje, desde a Emenda Constitucional promovida por Roosevelt, é de dois meses e meio, mesmo assim muito tempo, um legado dos primórdios da República Americana, no final do século XVIII, quando os transportes e as comunicações exigiam muitos dias para que cada Estado validasse os resultados eleitorais.

A Rússia já reagiu aos mísseis ATACMS com a reafirmação de uma nova versão da sua doutrina nuclear, que passa a incluir possível reação a ataque por potência não-nuclear com um aliado possuidor de arsenal nuclear. E fala de interesse de Biden numa escalada.

Ora, aquilo que é evidente da parte de Biden é dar à Ucrânia possibilidades de, em futuras negociações, ter argumentos extra perante Putin. E também forçar os parceiros europeus da NATO a reafirmarem o apoio à Ucrânia nos próximos meses. É uma estratégia de alto risco, e a vários níveis, pois caso exista mesmo uma escalada do conflito com a Rússia — e esta escalada não tem de ser forçosamente nuclear —  pode acontecer haver decisões a tomar por um presidente de saída, com consequências muito para além da data dessa saída.

Uma concertação de posições entre Biden (com a sua dureza perante Putin) e Trump (aberto ao diálogo com o líder russo) teria sido a atitude mais lógica, e ambos até se encontraram há dias. É improvável? Apoiantes do futuro presidente já criticaram a decisão de Biden. Pode ter acontecido? Seria uma complicação para a Rússia. Uma conversa entre supostos patos coxos pode sempre ser uma caixinha de surpresas.

Diretor-adjunto do Diário de Notícias

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