A França em território desconhecido
Macron jogou na roleta russa e não pode queixar-se do que aconteceu no domingo em França. O grande centro que o presidente fez alcandorar ao poder em 2017 terminou no passado domingo. Entrámos em território desconhecido.
O bloco macroniano só conseguiu um voto em cada cinco franceses que foram às urnas, a extrema-direita obteve um voto em cada três. A Frente Popular de Esquerda ficou bem acima de Macron, mas claramente atrás do Rassemblement National.
Ainda assim, vale a pena olharmos para este dado: os jovens preferiram a esquerda à extrema-direita, desmontando alguns mitos que têm vindo a florescer nos últimos tempos sobre uma suposta “rendição” dos mais novos ao canto de sereia do populismo de direita.
Os eleitores entre os 18 e os 24 deram 48% à Frente Popular, 33% à extrema-direita e apenas 9% ao centro de Macron. Entre os eleitores dos 25 a 34 anos, 38% para a esquerda unida, 32% à RN e 13% ao centro. A extrema-direita só começa a vencer a partir dos 35 anos: 36% para 31% da esquerda e 17% do centro (35-49 anos). A maior vantagem de Bardella e Le Pen surge no segmento 50-59: 40%, para 25% da Frente Popular e 18% do centro macroniano. Dos 60 aos 69 anos surge o maior equilíbrio dos três blocos: 35% da RN, 24% da Frente Popular, 21% Macron. O centro do presidente vence no segmento dos mais velhos (70 anos ou mais), com 32%, para 29% da RN e 18% da esquerda unida.
A queda do centro - mas vem aí a recomposição para 2027
Macron lutou até ao fim contra a subida dos extremos - e corre o risco de terminar o seu segundo mandato “comido” por eles.
Bardella fez toda a campanha falando num púlpito que dizia “A alternância começa”. O cerco sanitário foi, pela primeira vez derrubado. Já não há forma de ignorarmos o elefante na sala.
Os 34% da RN são apenas ligeiramente superiores aos 32% obtidos há semanas nas Europeias. Para mais, contam com a dissidência Ciotti entre os Republicanos do centro-direita. Mas perante os 70% de adesão eleitoral, significam uns impressionantes 12 milhões de votos. A extrema-direita surgiu com apoio transversal, ainda que nas duas maiores cidades se tivesse notado uma última barragem: apenas 8% em Paris, 12% em Lyon.
Resta a (ainda discutível) luz de esperança para as Presidenciais de 2027. Mesmo que na segunda volta das Legislativas não se consumem as alianças antinatura entre o bloco Macron e a Frente Popular de Esquerda, para as Presidenciais de 2027 a situação será diferente. Os votos desses dois blocos mais os 10% dos Republicanos que não alinharam na capitulação de Ciotti à RN parecem configurar um caminho para travar a entrada de Marine Le Pen no Eliseu em 2027 - desde que se encontre um candidato capaz de federar setores tão diferentes nesse objetivo comum.
Palavra-chave: coabitação
A coabitação será a palavra-chave da política francesa até maio de 2027: Macron no Eliseu, Bardella em Matignon (com Marine Le Pen a comandar na sombra).
Logo a seguir ao fecho das urnas, Bardella e Marine destacaram que “nenhum francês perderá qualquer direito”, com esta vitória da extrema-direita, tentando consumar a “normalização”. E a nuance é tudo. Eles disseram “nenhum francês”. No subtexto está, certamente, a ideia de que a vida dos imigrantes em França passará a ficar bem mais difícil a partir de agora.
Uma das grandes preocupações imediatas: o apoio à Ucrânia e as relações com a UE e NATO. Le Pen já considerou que o presidente deve ter um “papel honorífico” na política externa e na Defesa.
Um Governo de extrema-direita não abdicará do poder do futuro ministro da Defesa e prepara-se para uma disputa dura com Macron em decisões como o futuro comissário europeu (o presidente já se antecipou e diz que quer Thierry Breton) ou mesmo o financiamento à ajuda militar a Kiev. Macron continuará a representar a França nos palcos internacionais, mas boa parte da concretização da ajuda à Ucrânia vai depender do orçamento da Defesa, que será dominado por um provável Governo de extrema-direita.
Outro dado muito preocupante: perto de 60% dos eleitores franceses que foram votar no domingo optaram por candidatos que apresentam muitas reservas em relação à UE e à NATO. A Frente Popular revela contradições incríveis: socialistas e ecologistas são pró-Ucrânia e pró-NATO, Mélenchon tem ligações a Putin, à China e Xi e é contra a NATO.