Em mais uma época de incêndios florestais, a ausência de um Cadastro Predial para todo o território português volta a estar na ribalta e continuam a levantar-se muitas dúvidas sobre as opções políticas que têm rodeado este que deveria ser um dos maiores desígnios nacionais: o conhecimento do território.
Por que será que Portugal não é o mesmo para todos quantos participam na gestão, exploração e valorização do território? A quem não interessa que se conheçam as mudanças de propriedade quando se anunciam investimentos? A quem não interessa que se conheçam as valorizações especulativas na conversão de terrenos rurais em zonas urbanas nas autarquias, que mais parecem “casas da moeda” a multiplicar dinheiro?
Por que será que se abrem e se fecham sucessivos buracos nas nossas ruas, para instalar condutas e cabos de diversas entidades, que não partilham os seus Sistemas de Informação Geográfica (SIG) e não sincronizam entre si as suas obras?
Ao longo de dezenas de anos sucederam-se as iniciativas, sem nunca conseguirmos chegar ao fim no conhecimento do país como um todo. Recordamos o SNIG, o SiNErGIC e mais recentemente o Balcão Único do Prédio (BUPi), assim como as iniciativas setoriais como o “Zonamento” para os censos estatísticos do INE, o “Parcelário” para controlo dos subsídios à agricultura e pecuária, o Cadastro Florestal, entre outros.
Sem um Cadastro Único, os operadores regulados de telecomunicações, energia, estradas, águas e saneamento, são obrigados a criar os seus próprios cadastros georreferenciados de base, com um evidente desperdício de recursos.
À Direção-Geral do Território (DGT), enquanto autoridade nacional do cadastro, caberia assegurar a representação georreferenciada do país, ao Instituto dos Registos e Notariado (IRN) competiria apenas a identificação dos verdadeiros proprietários e à Autoridade Tributária (AT) caberia somente definir o imposto a cobrar.
Face aos atrasos na criação do Cadastro, nas suas dimensões geográficas, jurídicas e fiscais, temos assistido nos últimos anos a um grave desrespeito institucional da parte do Ministério da Justiça, ao assumir para si uma competência de georreferenciação do país no âmbito do BUPi, com o habitual “chega para lá que eu faço”, numa luta entre protagonistas que se aproveitam do vazio de governação.
De facto, não deveria competir ao Ministério da Justiça, mas sim à DGT, enquanto autoridade nacional do cadastro, a coordenação do Sistema Nacional de Informação Geográfica, a certificação dos técnicos de cadastro e a interoperabilidade dos dados, garantindo a coerência necessária à integração com os metadados específicos de acordo com a diretiva INSPIRE, podendo-se contar igualmente com o contributo precioso dos SIG do Centro de Informação Geoespacial do Exército.
A resolução das disputas de herdeiros e a identificação dos proprietários são sem dúvida as tarefas mais difíceis, o que obriga a contar com o contributo ativo das autarquias e ir ao terreno confirmar junto dos mais velhos a delimitação dos marcos e dos polígonos, com o máximo rigor técnico e tendo em vista à identificação dos seus donos efetivos, para evitar conflitos e o far west declarativo a que estamos atualmente a assistir.
Na Europa, apenas Portugal e a Grécia ainda não têm cadastro. Há mais de 20 anos que alguns economistas, como o prof. Augusto Mateus, demonstraram que a rentabilidade do cadastro teria um retorno cinco vezes maior ao seu investimento, mas hoje constata-se que, com as tecnologias atuais, o retorno económico seria muito mais elevado e os prazos de realização muito mais curtos.
Entretanto, foram-se acumulando prejuízos decorrentes da falta de informação territorialmente relevante, de suporte às políticas de gestão e planeamento de áreas como a Saúde, a Educação, a Justiça, a mobilidade, os recursos naturais, os licenciamentos, as infraestruturas económicas, o combate à corrupção, entre outras.
Apesar dos méritos da Estratégia Nacional de Territórios Inteligentes (ENTi), que está em curso até 2030, tendo como prioridade o desenvolvimento de mais um portal sobre cidades inteligentes (smart cities), baseado numa estratégia de dados abertos, é lamentável que o desígnio do Cadastro Predial (rural e urbano) tenha sido totalmente omitido e o papel da DGT mais uma vez menosprezando.
A APDSI, enquanto associação de utilidade pública, tem vindo a lançar, ao longo de mais de 20 anos, vários estudos e tomadas de posição, denominadas “Portugal é um só”, com vista à criação de um programa nacional de governação da informação georreferenciada do território português, de forma transversal, que envolva todas as entidades relevantes.
Há mais de 30 anos que assistimos às controvérsias na criação de um “Cadastro Multifuncional”, em que seria possível partilhar a mesma representação de Portugal, com dados georreferenciados abertos e gratuitos, a que se acrescentariam múltiplos layers com dados sobre recursos agrícolas e florestais, telecomunicações, energia, estradas, vias férreas, águas e saneamento, entre outros. No entanto, os “negócios” dentro do Estado e as disputas de competências e de protagonismos têm bloqueado este percurso verdadeiramente estruturante e necessário para o desenvolvimento integrado do país.