A Europa não sobrevive a um “Dexit”

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“Se não for possível uma reforma da União Europeia, se não conseguirmos reconstruir a soberania dos Estados-membros da UE, devemos deixar o povo decidir, como fez o Reino Unido”.

Quem disse isto foi a colíder do segundo partido com mais intenções de voto nas sondagens na Alemanha: Alice Weidel, em entrevista publicada no Financial Times a 21 de janeiro, lançou o horizonte do que poderão ser as consequências de uma chegada ao poder do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD). “Poderemos realizar um referendo sobre o ‘Dexit’ - a saída alemã da UE”. 

Não era suposto que isto fosse para levar a sério, tendo em conta o fortíssimo compromisso alemão pelo projeto europeu e pelo apoio amplamente maioritário da sociedade germânica em torno da liderança da Alemanha na UE. E também se nos lembrarmos que, no Reino Unido, 55% dos eleitores que votaram pelo Brexit no referendo de 2016 confessam-se arrependidos do que fizeram há oito anos (as trapalhadas que se somaram desde aí em Londres a isso o justificam). 

Sucede que a AfD, fundada em 2013 em plena crise das dívidas soberanas e do euro, está com 22 por cento nas sondagens, bem acima do SPD de Olaf Scholz e pouco atrás da CDU, a direita clássica alemã. As eleições europeias são já em junho e as legislativas alemãs estão marcadas para o próximo ano. E ainda antes, para setembro, estão agendadas três eleições regionais no leste da Alemanha, zona onde a AfD lidera com mais de 30% das intenções de voto.

Seria pouco avisado ignorarmos todos estes sinais.

Por enquanto, há que confiar na “cerca sanitária” que os principais partidos alemães têm mantido para isolar a AfD. CDU e SPD até já governaram numa grande coligação no último governo Merkel – numa altura em que a extrema-direita alemã se cingia a 10 por cento. Agora que a AfD estará em mais do dobro disso, a CDU, na oposição, endurece o seu discurso, e o SPD (que lidera coligação governamental com liberais e verdes) também está a tentar dar respostas aos motivos que estarão a levar a esta subida alarmante da extrema-direita germânica.

Mais deportações (mas a direita extrema quer ainda mais)

Nancy Faeser, ministra do Interior da Alemanha, apontou o objetivo: “Queremos que as pessoas que não têm o direito de ficar no nosso país sejam obrigadas a abandoná-lo mais depressa”. A ministra Faeser referia-se à Lei de Melhoria do Repatriamento, que visa “expulsar de maneira mais rápida e mais eficaz. Os que fogem da guerra e do terrorismo podem contar com o nosso apoio”.

A lei, que endurece as condições de deportação, foi aprovada com os votos da coligação formada pelo SPD, o Partido Democrático Livre e Os Verdes. Tanto a AfD como a CDU votaram contra por considerarem que a lei deveria ser mais dura. A polícia passa a ter novos poderes para procurar as pessoas identificadas para sair do país.  Este tem sido um obstáculo comum para as autoridades em caso de deportações falhadas devido à incapacidade de localizar as pessoas envolvidas. A falta de cooperação dos migrantes, que podem querer não fornecer documentos de identificação sabendo que isso pode dificultar o repatriamento, também pode atrasar ou impedir o processo. A duração máxima de retenção antes da expulsão passa de 10 para 28 dias, para dar às autoridades mais tempo para organizar as expulsões. Os requerentes de asilo passam a poder começar a trabalhar após seis meses, em vez dos atuais nove meses. A duração dos benefícios será alargada de um ano e meio para três anos. A regra também inclui que os crimes de ódio antissemitas podem ser considerados “graves” para efeitos de deportação. O mesmo se aplica ao racismo, à xenofobia, ao género ou à orientação sexual. O Governo alemão estima que a nova lei vai afetar 50 mil pessoas e conduzir a 600 expulsões suplementares por ano. As deportações na Alemanha aumentaram, no ano passado para 16 430, 27 por cento mais do que no ano anterior. A Alemanha recebeu 352 mil pedidos de asilo no ano passado, mais 51% que em 2022. Estes números estão ainda distantes do pico da crise migratória entre 2015 e 2017, quando 722 mil pessoas solicitaram asilo. A Alemanha acolheu cerca de 1,1 milhão de refugiados ucranianos na sequência da invasão russa. 

A Liberdade (para já) está nas ruas

O crescimento da extrema-direita na Alemanha faz soar os alarmes de quem tem memória histórica. Mas a sociedade alemã continua a ser pujante, diversa e profundamente democrática.

As revelações de que membros importantes da AfD – incluindo um elemento próximo de Alice Weidel (Robert Hartwig, entretanto demitido) – terão discutido a deportação em massa de pessoas de origem estrangeira numa reunião perto de Potsdam com militantes neonazis, levaram à realização de enormes manifestações pela Liberdade e contra a extrema-direita, em várias cidades alemãs. As manifestações reuniram centenas de milhares de pessoas e incluíram o próprio chanceler alemão, Olaf Scholz, e a ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, bem como figuras relevantes da sociedade alemã, como desportistas, artistas ou intelectuais. 

Ainda podemos contar com a Alemanha?

A UE chocou-se com o Brexit. Mas sobreviveu. E, nalguns aspetos, até se reforçou. Perder um país da dimensão e com a pujança do Reino Unido foi um grande rombo. Mas os últimos anos mostraram que o inesperado divórcio foi muito pior para os britânicos do que para os europeus. 

Desde 2016, não só não houve ainda qualquer país a pretender seguir o caminho britânico da separação com a União Europeia como há cada vez mais países a quererem juntar-se ao clube europeu – Ucrânia, Geórgia e Moldávia que o digam. 

Mas não vale a pena tentar minimizar o risco: a Europa não sobreviveria a um “Dexit”. A Alemanha é – neste tempo de invasão russa da Ucrânia, perturbação interna em França, com séria possibilidade de Marine Le Pen tomar o Eliseu em 2027 e de impasse político nos EUA – o grande pilar do edifício europeu.

Sem Berlim, Bruxelas e Estrasburgo ruiriam.

Por enquanto, temos na chancelaria alemã um dos maiores defensores da construção europeia e da integridade territorial ucraniana. Olaf Scholz tem somado apelos a que os estados-membros da UE aumentem o apoio à Ucrânia e não se cansa de recordar que a Alemanha ajudará Kiev “durante o tempo que for necessário”. Berlim duplicará, em 2024, o apoio à Ucrânia, fixando-o em oito mil milhões de euros anuais.

Mas a vida de Scholz não é fácil: a Alemanha teve, em 2023, um desempenho económico preocupante, com uma contração de -0,3% da sua economia.

A grande maioria dos alemães não quer recuar aos anos 30 e 40 do século passado. E é animador perceber que, pelo menos para já, não será pela “apatia dos moderados” que os extremistas, geralmente mais mobilizados, vão prevalecer. 

Falta saber por quanto tempo mais assim será.


Especialista em Política Internacional

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