A estranha marca do progresso
Abro a caixa do correio e, além das contas para pagar, tenho lá o Boletim Municipal do Montijo, cidade onde nasci e sempre vivi. Folheio a publicação de 32 páginas e vejo um mundo cor de rosa. Orçamento de 57 milhões aprovado, promessa de redução do IMI, anúncio de benefícios fiscais para residentes e pequenas empresas, distinções atribuídas à autarquia na qualidade da água e no apoio prestado às famílias e várias notícias de obras em curso ou concluídas. Há, até, uma Entrevista ao Pai Natal. Boa parte do Boletim é preenchido com as histórias de pequenos comerciantes - repletas de mensagens positivas, em linha com a quadra festiva de dezembro - que marcaram presença no Mercado de Natal, que teve lugar na Praça da República.
É para ali que me dirijo. No n.º 2 da Rua Almirante Cândido dos Reis - a antiga Rua Direita, como ainda lhe chamam os montijenses -, a antiga retrosaria, há anos de portas fechadas, deu lugar a um restaurante. Peço um café e faço perguntas. Não faltam planos, nem otimismo. A esplanada já está a funcionar e a ideia é potenciar aquele espaço, assim que chegar a primavera, com música ao vivo, serviço de cocktails e petiscos. Estamos no centro histórico do Montijo, o cartão postal da cidade, coração das Festas Populares de São Pedro e dos pequenos mercados ocasionais. O potencial para dar certo, existe. Fico a torcer por isso, porque a cidade está dormente e bem precisa deste tipo de iniciativas.
Em maio de 1998, a inauguração da Ponte Vasco da Gama ligava o Montijo a Lisboa e chegava com a promessa de desenvolvimento e criação de valor no concelho. A população disparou (55 682 pessoas, segundo os Censos 2021, mais 16 500 do que em 2001) e houve um boom na construção: nasceram, então, dezenas de novas urbanizações, um enorme shopping, retail parks periféricos, vários híper e supermercados (são, pelo menos 12, os que funcionam atualmente), um novo, mas pouco prático, cais fluvial que afastou mais pessoas do centro, dezenas de rotundas e muitos quilómetros de asfalto e ciclovias com pouco uso. Foi também feita uma requalificação da Zona Ribeirinha, que realmente ajudou a corrigir o problemas das cheias, mas a relação da cidade com a Baía do Rio Tejo continua quase toda por explorar. Construíram-se também alguns equipamentos sociais, que já eram ou se tornaram necessários. E pouco mais se fez.
O reverso da medalha é notório. O perímetro edificado da cidade alargou-se bastante, mas o Montijo é hoje, cada vez mais, uma terra dormitório, descaracterizada, praticamente sem vida noturna, nem estratégia visível para cavalgar a onda do turismo que Portugal conheceu nos últimos anos. A indústria caiu a pique - voltando aos Censos, hoje a percentagem de população que trabalha na indústria e construção é de 16,9%, quando em 2001 era 32,3% - e o que sobra são ruínas a céu aberto. As oportunidades de trabalho não chegaram e vários dos meus amigos de infância acabaram mesmo por sair do país. O centro da cidade foi sendo, lentamente, votado ao abandono e o pequeno comércio foi definhando - uma realidade, aliás, comum a tantos outros locais no país. O mundo cor de rosa do Boletim Municipal é difícil de constatar ao andar na rua.
Volto à Rua Direita. Conto duas dezenas de espaços fechados, entre eles a pastelaria Mimosa, outrora um ex-libris da cidade e a razão que mais vezes me levava a esta rua. O talho virou um centro de acústica. Um pronto-a-vestir é hoje um supermercado de produtos asiáticos. O café da Banda Democrática, que tinha uma discoteca famosa pelas matinés de domingo, é agora um restaurante indiano. Das três ourivesarias, sobra uma em atividade. A loja de discos desapareceu. A do gás, a espingardaria, a de eletrodomésticos, a seguradora, duas sapatarias, duas papelarias e mais uns quantos prontos-a-vestir também.
Pode dizer-se que é o mercado a funcionar, a lei da oferta e da procura, mas a evolução, por aqui, traduz-se numa sucessão de gabinetes de estética, lojas asiáticas e frutarias que substituíram o comércio tradicional. É estranha, a marca do progresso.
A lista não fica por aqui. A antiga sede do PCP ameaça ruir, assim como os armazéns Gabriel do Carmo, onde se vendia de tudo um pouco, entretanto consumidos por um fogo. Muitas destas lojas estão tapadas por lonas de plástico, onde estão desenhadas portas e janelas coloridas, como que a cobrir a vergonha do estado a que o centro da cidade chegou. Numa delas está escrita a frase: “O meu sonho? Uma casa no Montijo.” As habitações fechadas são outro cancro nesta rua. Há prédios inteiros abandonados, sem qualquer uso, a apodrecer.
Termino de subir a rua, pouco movimentada, desalentado com o que, aos poucos, fui vendo acontecer e que agora me volta a inquietar. Preciso de mais um café. Olho em redor e não tenho onde o tomar, tirando um espaço onde estão instaladas uma série de máquinas que servem comida, snacks e bebidas 24 horas por dia. Perco imediatamente a vontade.
Tomara que tudo dê certo no n.º 2 da Almirante Cândido dos Reis. Que a primavera chegue depressa e traga com ela a prometida música ao vivo. Com acordes diferentes da marcha fúnebre que hoje se faz ouvir.
Editor executivo do Diário de Notícias