A escrita e a vida
Por que razão, apesar de todas as prevenções dos puritanos da análise literária, nos continuam a interessar, a nós leitores, as biografias dos autores que admiramos e até mesmo as daqueles que desprezamos? Por que motivo, ou vício de bisbilhotar, sentimos que a nossa compreensão, no sentido mais lato do termo, de um autor se aprofunda e enriquece com esses pormenores da sua vida?
Ensinou-nos Keats que o poeta é o menos poético dos seres, porque não tem identidade, como uma espécie de camaleão lírico; revelou-nos Emily Dickinson que o poeta é um “ser suposto”, criado pelo seu autor como mais um ser de ficção; e Pessoa retoma e consolida esta ideia, multiplicando-se em diferentes poetas, dos quais, curiosamente, desenha sempre as biografias, como um Shakespeare dos seus heterónimos. E essas ficções não afastam de nós a vontade de saber mais da vida de quem as ficcionou.
É que muita coisa da vida do autor salta inevitavelmente para a ficção que é a sua obra e assim o leitor atento pode ganhar novas perspetivas para uma compreensão mais ampla do que lê. Isto não quer dizer que a obra não valha por si própria e pelos seus estritos valores literários. Para me emocionar com a grandeza da Ode a Uma Urna Grega não preciso conhecer os tormentos da relação sentimental entre Keats e Fanny Brawne. Para entender a dialética amorosa da poesia de Camões não necessito por certo conhecer o nome das suas amadas, basta-me saber que “em várias flamas variamente ardia”. E, no entanto, leio avidamente as biografias dos autores que me fizeram sentir a grandeza da escrita literária e até mesmo as intrigas dos meios literários em que viveram.
Carlos Reis, um grande queirosiano e seriíssimo estudioso da literatura, tem o cuidado de nos advertir num seu texto recente (“Eça de Queirós ou o escritor como diplomata”, in Viagens e Diplomacia, Olhares de Eça de Queirós sobre o Mundo, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024) que “não me interessa o cônsul Eça de Queirós que também escrevia romances e contos, mas antes o escritor que era cônsul”, num “caveat” prudente contra quaisquer leituras biografistas. Mas a verdade é que, se nada ganho do ponto de vista do prazer da leitura em saber que a magnífica cena da expulsão do Ega, vestido de Mefistófeles, do baile de máscaras do Cohen tem raízes numa cena infeliz ocorrida com o autor num baile em Leiria, a verdade é que a minha empatia com o texto aumenta com a entrada dessa figura maldita do autor no campo da minha imaginação ao ler o romance.
Do mesmo modo, a leitura de Pessoa, por muito que ele tenha afastado a sua obra da sua vida (e, no entanto, aquelas evocações da infância...), por muito que o sujeito dos seus poemas (como de todos os poemas) seja o “ser suposto” (ou os seres supostos...) criados pelo próprio texto, essa leitura não mais poderá dispensar a exaustiva biografia escrita por Richard Zenith. Preciso dela para me identificar com os poemas de Pessoa? Por certo que não. Mas a biografia alarga a minha compreensão de toda a obra de Pessoa.
A grande denúncia do biografismo foi feita por Marcel Proust no seu Contre Sainte-Beuve. Sainte-Beuve foi um importante crítico literário francês que media os autores pelas suas pessoas, paixões, opiniões e posições sociais mais do que pelas suas obras. Proust tinha razão, é claro, mas não é por acaso que os estudiosos do século XIX francês têm em Sainte-Beuve, como nos diários dos irmãos Goncourt, importantes elementos para a melhor compreensão das obras literárias surgidas nessa época. Com o risco de repetir-me: para lermos e admirarmos Balzac não precisaremos desses elementos; mas para melhor compreendermos a sua obra, alguma coisa nos trazem essas informações.
Eça de Queirós dizia: “Eu não tenho biografia, sou como o Principado de Andorra.” Mas a verdade é que até o Principado de Andorra tem uma História...