A distopia Trump 2.0
Donald Trump vai continuando a formar uma Administração que é, na sua globalidade, muito pior que a primeira, tanto pela falta de dimensão política, como pela preocupante fraqueza técnica.
Depois do primeiro leque de escolhas pouco ortodoxas e muito preocupantes (Tulsi Gabbard, Pete Hegseth, Robert Kennedy Jr., Elon Musk) - Marco Rubio para Secretário de Estado acabou por ser a única exceção minimamente tranquilizadora, apesar de também discutível - Trump tem prosseguido a sua senda de construir uma Administração que só pode ser encarada como uma espécie de distopia que desafia os quadros referenciais até agora dominantes em Washington.
O recuo de Matt Gaetz pode ser encarado como um primeiro sinal de responsabilidade. Mas só aconteceu, na verdade, pelo receio do presidente-eleito de que o Senado, de maioria republicana, o viesse a barrar, o que constituiria uma grande derrota política para Trump. A opção alternativa também levanta problemas sérios: Pam Bondi, ex-procuradora-geral da Florida, é uma leal à tese de que Trump venceu a Eleição Presidencial de 2020 e foi sua defensora legal no impeachment que se seguiu ao ataque ao Capitólio. Bondi reforça, também, o peso desproporcionalmente grande da Florida na futura Administração.
Outra escolha desconcertante é a de Linda McMahon, cofundadora da World Wrestling Entertainment, organização que gere espetáculos de luta livre americana, e ex-responsável da Small Business Administration na primeira Administração Trump, para secretária da Educação. Escolher uma mulher de negócios, dedicada ao setor do entretenimento, diz tudo sobre o que pretende Donald Trump para o Departamento de Educação: quer mesmo extingui-lo.
Mas há mais escolhas muito pouco reconfortantes. Sean Duffy, ex-apresentador do The Bottom Line na Fox Business, será secretário dos Transportes. Foi congressista republicano por oito anos, presidiu ao subcomité de Seguros e Habitação. Antes disso, foi uma estrela de reality show na MTV.
Doug Collins, ex-congressista republicano da Geórgia, capelão do Comando da Reserva da Força Aérea dos Estados Unidos será secretário dos Assuntos dos Veteranos. Foi um grande defensor de Trump durante o seu primeiro processo de destituição, que teve a ver com a ameaça de Trump a Zelensky de não dar o dinheiro americano de apoio à Ucrânia, caso o então recém-eleito presidente ucraniano não fornecesse a Donald elementos comprometedores sobre o filho de Joe Biden, Hunter, pela ligação que este tinha à empresa Burisma.
Um empresário no Conselho de Segurança Nacional
O secretário do Interior será Doug Burgum. Governador de Dakota do Norte, já se candidatou às Primárias do Partido Republicano, mas depois de desistir dedicou-se, de corpo e alma, a ajudar Donald Trump a chegar à nomeação. Chegou a integrar a shortlist para a vice-presidência, seria até um dos preferidos de Trump, mas acabou por perder essa corrida para J.D. Vance. Junta experiência de governador com perfil business, que é do agrado do presidente-eleito. Terá assento no Conselho de Segurança Nacional, algo que até agora nunca aconteceu com um secretário do Interior.
Howard Lutnick, próximo do presidente e um dos coordenadores desta transição presidencial 2024, foi escolhido para secretário do Comércio. Aposta nas criptomoedas, lidera a corretora Cantor Fitzgerald e deverá ser um elemento crucial para que a futura Administração aplique a agenda de Trump para as tarifas (palavra que Donald diz gostar tanto como “amor”).
E, claro, há ainda Chris Wright para o Departamento de Energia. CEO da Liberty Energy e defensor do desenvolvimento de petróleo e gás, incluindo do fracking (sistema de fraturamento hidráulico para extração de petróleo e gás natural, muito poluente e crucial na atividade da Pensilvânia). Wright é um campeão das energias poluentes e um crítico da aposta nas renováveis e nos cuidados pela defesa do clima.
E os palestinianos, senhores?
As escolhas de Trump para o Médio Oriente não dão grande margem para benefícios de dúvida: será uma Administração “só Israel” (não apenas “pró-Israel”), com uma clara assunção de que o alinhamento político e ideológico do presidente-eleito com o primeiro-ministro israelita darão a Benjamin Netanyahu um espaço até agora nunca reunido para consumar a ocupação da Cisjordânia, “legalizar” os colonatos e concretizar a guerra em Gaza.
Mike Huckabee como embaixador dos EUA em Israel representa a confirmação de todos esses sinais. “Ama Israel e, da mesma forma, o povo de Israel o ama. Mike trabalhará incansavelmente para trazer a paz no Médio Oriente”, explicou Trump.
Pastor evangélico, tem interpretação bíblica do papel de Israel na região. Vê os judeus como povo escolhido por Deus, com Israel como a sua pátria legítima. O futuro embaixador americano em Israel, ex-governador do Arkansas e candidato nas Primárias republicanas de 2012 e 2016, não considera a solução de dois Estados, caminho que estava a ser trabalhado pela diplomacia americana nos últimos anos, por não aceitar a ideia da Palestina - o que o leva a rejeitar a noção de “ocupação israelita da Cisjordânia”.
Também Steven Witkoff, enviado-especial do presidente-eleito para o Médio Oriente, levanta os maiores receios de quem pretende um processo que caminhe para os dois Estados na questão israelo-palestiniana. Parceiro de golfe de Donald Trump, tem uma visão em tudo idêntica à de Huckabee sobre como empoderar a posição israelita e isolar os intentos palestinianos.
A exceção Scott Bessent
Nem todas as opções de Trump apontam para mera lealdade pessoal ao presidente. A escolha de Scott Bessent para o Departamento do Tesouro (cargo equiparado ao de ministro das Finanças) indica uma via que não passa totalmente pela influência de Elon Musk. Bessent, gestor do hedge fund Key Square Capital Management, foi conselheiro económico da campanha presidencial de Donald Trump e entrou em colisão com Musk, que chegou a garantir que a escolha para Secretário do Tesouro não recairia nele.
O presidente-eleito viria a desmentir o próprio Musk com esta indicação: “Vai ajudar-nos a inaugurar uma nova idade de ouro para os Estados Unidos, à medida que fortalecemos a nossa posição como a principal economia do mundo, centro de inovação e empreendedorismo, destino para o capital, enquanto sempre, e sem dúvida, mantendo o dólar americano como moeda de reserva do mundo”, escreveu Donald Trump. Trump vê em Bessent “um dos principais analistas de Wall Street”.
Scott Bessent foi durante vários anos um democrata: apoiou as candidaturas presidenciais de Al Gore, John Kerry e Barack Obama. Mas foi-se aproximando da esfera Trump nos últimos anos, ainda que tenha uma característica que o poderia diabolizar nesse meio: o de ter sido diretor de investimentos de George Soros.
Ao ser escolhido para secretário do Tesouro, Donald Trump mostra que nunca deixará cair a ligação ao mainstream de Wall Street, mesmo que mantenha ligações fortíssimas com quem envereda pelas teses conspirativas em torno da suposta “influência maléfica” de Soros.
Mas a grande questão para Steve Bessent será outra: conseguirá travar a agenda prometida pelo presidente-eleito e que, como explicou Larry Summers (seu antecessor na Presidência Bill Clinton e conselheiro económico na Presidência Barack Obama), seria triplamente inflacionária - deportação em massa, baixa de impostos aos bilionários e tarifas em esteroides.