A dignidade não se abate

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Olhar para o Talude hoje traz à memória as demolições, há mais de 20 anos, do Bairro do Fim do Mundo e das Marianas, da Quinta da Serra, da Azinhaga dos Besouros, do 6 de Maio, entre tantos outros. Da resistência dos moradores e do desespero de ver o único refúgio a desaparecer.

Falemos claro: ninguém vive numa barraca ou em situações insalubres porque quer. Não é por opção, como alguns querem fazer passar, mas porque é a única forma de (sobre)viver. Ninguém está a romantizar ou a defender a existência de bairros autoconstruídos, sem água ou luz e saneamento básico.

Sabem quem aqui vive? Quem limpa os escritórios onde confortavelmente tanta gente trabalha, quem limpa os hospitais, as creches, quem cuida e ensina crianças. E sim, são na sua maioria pessoas racializadas, vulneráveis e em situação de trabalho precário.

São quem se levanta de noite e de noite chega ao seu único pouso: quatro paredes levantadas a custo e um teto de chapa. Tentem imaginar sair para trabalhar e no final do dia verem este único teto reduzido a escombros.

É inaceitável que pessoas, em pleno séc. XXI, vivam nestas condições. Mas é igualmente desastroso e desumano demolir 64 barracas sem qualquer resposta concreta e real de realojamento, resposta de emergência ou tampouco presença de técnicos de intervenção social. Pelo contrário, são operações com forte presença policial, que usam a força contra moradores, incluindo idosos e crianças. Um processo com notificações sem rosto pregadas na porta com 48h de antecedência, num fim de semana, sem tempo útil para resposta ou contestação. Esta ação fere a Constituição e contraria a Lei de Bases da Habitação.

E voltamos ao mesmo mantra: “é preciso dar o exemplo, demolir para não proliferar. É indigno viver assim. A manta é curta…ninguém pode passar à frente…”, dizem alguns. É a velha narrativa de pôr em confronto e em conflito os tantos que pouco ou nada têm.

O que fizeram estas autarquias para responder à crescente crise de habitação? A Estratégia Local de Habitação de Loures e da Amadora previa a construção de nova habitação e aquisição de fogos. Sabemos que estas medidas demoram tempo, tempo que muitas vezes as famílias não têm. Destas medidas de médio e longo prazo, o que foi executado? E que medidas de curto prazo foram tomadas? Quantos fogos devolutos há nestes 2 concelhos? Dados oficiais indicam a existência de 8.400 em Loures e 6.800 na Amadora. Fogos que poderiam ser

legalmente mobilizados para enfrentar esta crise, cumprindo a sua função social, como diz a Lei de Bases da Habitação.

Esta é a opção de quem prefere a força ao diálogo e acompanhamento destas famílias. Será que é sinal da urgência de ganhar eleições incorporando a linguagem e pensamento da extrema-direita? Ou é algo bem mais profundo e estrutural?

Ser autarca é conflito, é lidar com interesses discordantes, é muitas vezes enfrentar contradições internas, sim, mas é saber estar do lado certo: da decência, da solidariedade e da coragem, da defesa da Constituição, da luta e trabalho para ter respostas concretas e não se ficar pelo populismo. E isso caiu claramente por terra em Loures e na Amadora.

Vereadora independente, Cidadãos Por Lisboa, na CML

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