'Fahrenheit 451' (1966): o cinema apaixonado pelos livros
'Fahrenheit 451' (1966): o cinema apaixonado pelos livrosD.R.

A cultura que não temos

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Nesta campanha do nosso descontentamento, está por aparecer algum dirigente partidário que, sem gritarias nem bandeiras a abanar atrás do púlpito, coloque no espaço eleitoral a questão da Cultura (com maiúscula, já agora). Em boa verdade, tal silêncio não é um incidente, mas uma norma que, com raríssimas exceções, todos têm seguido, há muitos anos, com a mesma chocante indiferença - para nos ficarmos pelos acontecimentos mais próximos, lembremos que tal tendência prevaleceu também nos debates sobre o último Orçamento Geral do Estado.

No universo das “análises” políticas, dominantes no espaço televisivo, as exceções também não bastam para anular uma cumplicidade ociosa com este estado de coisas. A simples pergunta que se justificava - “onde está um político que avance com alguma questão, por exemplo, sobre gestão cultural?” - não está presente em nenhuma conversa de ecrã (sucedâneo da expressão “conversa de café”). E tanto mais quanto proliferam os especialistas de coisa nenhuma que falam de política como se estivessem a dissertar sobre as peripécias escabrosas de uma telenovela.

Alguma razão lhes assiste, é verdade. Isto porque há modelos de (des)informação televisiva, cada vez mais agressivos, que exploram um tratamento pitoresco e fulanizado dos protagonistas, acontecimentos e contrastes da cena política. O que, bem entendido, não pode ser separado da demissão intelectual dos próprios políticos que aceitam ser tratados como figurantes de muitas formas de histeria “informativa”. Exemplo? Nos tempos que correm, não temos nenhum político capaz de reagir à agitação ruidosa dos microfones, quase sempre brandidos por jovens repórteres (quem os ensinou?), lembrando que, daquele modo, não é possível transmitir uma simples ideia, quanto mais pensá-la e discuti-la.

Por tudo isto, que não é pouco nem socialmente neutro, a indiferença político/televisiva aos temas, questões e discussões culturais está longe de poder ser formulada de modo tão esquemático e moralista (mea culpa). O que está em jogo excede o apagamento dos chamados programas culturais, em alguns casos cinicamente substituídos por “alternativas” colocadas nas madrugadas, depois da avalanche quotidiana de telenovelas, Reality TV e inenarráveis debates filosóficos sobre futebol...

O que está em jogo não é apenas diferente - é, sobretudo, de outra dimensão, desafiando os fundamentos materiais e simbólicos da própria vida democrática: não estamos perante um mero apagamento público dos temas culturais, mas sim a viver marcados pelo triunfo de uma outra cultura. Que cultura? Aquela que resulta do perverso entrelaçado da degradação do pensamento político, da publicidade dos valores consumistas e da infantilização galopante de muitas linguagens do espaço televisivo.

O tratamento do cinema, claro, poderá ser um esclarecedor sintoma deste estado de coisas. Seja como for, o que está a acontecer é muito mais complexo do que o facto de a exposição de Jean-Luc Godard em Serralves não encontrar nos nossos ecrãs nem uma centésima parte do tempo ocupado com épicas “reportagens” sobre a viagem de um qualquer autocarro de uma equipa de futebol a caminho de um estádio... Aliás, perante o silêncio ensurdecedor da nossa classe política, o mesmo país que deixa degradar salas de espetáculo e nem sempre sabe favorecer a criação artística, prepara-se para participar na organização de um Mundial de Futebol.

O cinema, enfim, é apenas um detalhe da vaga de fundo que vai destruindo, nem que seja por omissão, as componentes de uma identidade cultural cuja riqueza transporta séculos de história, pensamento e prazer de pensar. Em 1966, François Truffaut realizou um filme, Fahrenheit 451, inspirado no romance homónimo de Ray Bradbury, sobre uma sociedade que, em nome da purificação dos cidadãos, queima os livros, ao mesmo tempo que, através dos ecrãs televisivos, lhes vai instilando as mais cruéis formas de ignorância e estupidez. Não estamos nesse ponto, bem sei, mas as palavras do próprio Bradbury envolvem uma gélida perturbação: “Não é preciso queimar livros para destruir uma cultura. Basta fazer com que as pessoas deixem de os ler.”

Jornalista

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