A culpa não é da Europa
Em Espanha continua em vigor o Orçamento do Estado de 2023, um documento proposto por um governo que já não existe, aprovado por Cortes com uma configuração partidária entretanto desaparecida e pensado para uma realidade geopolítica que é hoje uma memória distante.
Assim deverá continuar, pelo segundo ano consecutivo. O governo não submeterá nova proposta de contas públicas, uma vez que não dispõe dos votos necessários para a aprovar no parlamento.
Mais do que uma dificuldade de gestão, trata-se de um embaraço constitucional. A Lei Fundamental é clara: o artigo 134.º, n.º 3, determina que o executivo deverá apresentar o Orçamento Geral do Estado ao Congresso dos Deputados pelo menos três meses antes do término do exercício orçamental anterior. O escasso respeito do governo em funções pela Constituição está longe de ser notícia, mas, para quem preza o Estado de Direito, não é um assunto menor.
Pedro Sánchez vê-se obrigado a governar por decreto, já que pouco ou nada consegue ratificar no Congresso. A maioria parlamentar que o sustém serviu para impedir a direita de aceder ao poder. Não serve para muito mais.
O presidente de governo é vítima de si próprio. Encostou o seu executivo minoritário a um esquema de poder que Alfredo Pérez Rubalcaba baptizou como ‘governo Frankenstein’. Rubalcaba, que antecedeu Sánchez na secretaria-geral do PSOE, entendia que o apoio parlamentar das esquerdas radical e extrema, bem como dos separatistas catalães e bascos, não só desvirtuava o socialismo espanhol como comprometia os destinos do país.
Sánchez ignorou a realidade e, cumprindo-se a profecia de Ortega y Gasset, a realidade vingou-se. A necessidade europeia de aumentar o investimento em Defesa agigantou as fragilidades internas, o que obriga o governo a uma gincana incómoda para quem a faz e lamentável para quem a vê.
Primeiro, aumentou o salário dos militares, medida cuja justiça é indiscutível, mas que não é o que Bruxelas tem em mente nem o que a realidade exige.
Depois, Sánchez argumentou que a Defesa vai muito para lá do gasto militar, abrangendo outras áreas, como a autonomia energética e o combate às alterações climáticas. O argumento é sem dúvida interessante, embora não o suficiente para disfarçar o truque de classificar como gasto em Defesa outras despesas públicas já cabimentadas.
Agora, procura enfatizar a gravidade da situação, avisando que os tempos mudaram, que a História acelerou, que o mundo é outro. Tem razão. Mas boa parte dos seus sócios de governo ainda está no Maio de 68. E prefere Moscovo a Kiev. Aliás, sempre preferiu Moscovo (antes preferia Moscovo a Washington, razão pela qual vive agora em completo desnorte).
A revista The Economist conclui que Sánchez está entalado entre os seus parceiros de coligação e a NATO. Em bom rigor, está entalado entre a NATO, a União Europeia, a Constituição, os interesses de Espanha e os partidos que escolheu contra o conselho de Rubalcaba.
A etapa seguinte nesta gincana passará por imputar à Europa a responsabilidade pelos fracassos internos, um expediente bem conhecido por todos os Estados-membros. Acontece, porém, que a União Europeia é um projecto multilateral. Os seus limites nascem da vontade – ou da incapacidade – de quem o integra. A Espanha de Pedro Sánchez é disso exemplo.
Politólogo.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico