A conversa entre Trump e Putin tratou da paz ou de negócios?

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Depois de passar mais de duas horas ao telefone, Donald Trump deve ter percebido que tentar negociar com Vladimir Putin sobre a questão ucraniana não leva a parte alguma. Putin não quer a paz. Quer, isso sim, a continuação da guerra até à submissão total da Ucrânia.

No seguimento do telefonema, as declarações vindas da Casa Branca, incluindo do vice-presidente Vance, por muito ambíguas que sejam, parecem mostrar que a Administração americana entendeu finalmente a posição de Putin. Por isso, levantam pela primeira vez a hipótese da mediação passar a ser feita pelo Papa ou por outras personalidades europeias. E dizem, de maneira clara, que a questão é um problema da Europa, ou seja, é à Europa que cabe encontrar uma solução.

Um indício claro do possível distanciamento americano encontra-se na conversa que Trump travou com os dirigentes da Alemanha, da França, da Finlândia, da Itália e da Comissão Europeia, no seguimento do ajuste com Putin. É significativo que tenha incluído, pela primeira vez, Von der Leyen. E que não tenha integrado no grupo o Reino Unido. A razão é óbvia: quer evitar um agravamento das relações entre a Rússia e este país, pelo qual existe um certo favoritismo em Washington. Trump mencionou o papel que o Vaticano poderá desempenhar num qualquer processo de paz e sublinhou, sem hesitações, que o seu interesse em relação a um acordo com Putin é meramente comercial. Não trouxe à discussão duas dimensões que até há pouco dizia considerar prioritárias: a possibilidade de sanções adicionais contra o regime russo e um cessar-fogo imediato, que poupasse vidas e permitisse iniciar o esboço de um plano de paz.

O termo da agressão russa só interessa à Administração americana porque permitirá retomar as relações económicas com a Rússia. Washington estaria assim pronto para aceitar o essencial das exigências de Putin. Mas Trump compreende, graças aos seus conselheiros mais chegados, que essas reivindicações não são politicamente razoáveis e, por isso, não seriam aceites nem pelos aliados europeus nem pela Ucrânia. Considera, assim, que é fundamental passar a responsabilidade das negociações para o campo europeu. Estes que se ocupem da guerra e da paz, que encontrem uma solução que lhes seja aceitável e que venham depois à Casa Branca, para obter a bênção final. Neste plano, os louros da vitória continuariam a caber a Trump.

Vejo, apesar de tudo, o alheamento da Administração americana do processo de paz ucraniano de modo positivo. Trump e os seus têm revelado um nível de inconsistência que é inaceitável. Por outro lado, a maneira como encaram a mediação não é profissional, e muito menos imparcial. Trump tem uma preferência manifesta pela narrativa que Putin lhe enfia pelos ouvidos: deve ter sido isso que aconteceu durante as duas horas de paleio ao telefone. Mais ainda, tem uma admiração assolapada por ditadores, sobretudo pelos que se encontram à frente de grandes potências e por outros, como Kim Jong Un, que gostam de fazer como o sapo, para passar por boi, como na fábula. Trump parece querer repetir essa lenda. Mais a sério, a sua equipa não tem a experiência nem reconhece os valores que devem orientar um processo neutro de mediação, no respeito pela lei internacional.

Neste contexto, o essencial é que os americanos se concentrem nos três aspetos seguintes: 1) que continuem a fornecer as armas e as informações de inteligência político-militar indispensáveis para a legítima defesa dos ucranianos; 2) que vejam a liderança russa com desconfiança, como um aliado íntimo da China e um regime essencialmente militarista, corrupto e sabotador dos interesses e da estabilidade das democracias; 3) que exerçam sanções sobre os países que fazem o jogo dos russos. Cabe aos principais interlocutores europeus insistir nestas mensagens junto da Casa Branca, para além de manter, e bem, os americanos afastados da direção de um qualquer processo de mediação que envolva a Rússia de Putin.

E a paz? Para além do que se espera dos americanos, como acima defendo, os europeus precisam de ganhar consciência que a paz é algo de precioso e de preço muito elevado. A hostilidade, as ameaças e a guerra vindas do Kremlin constituem uma agressão pluridimensional que exige uma combinação de respostas: diplomáticas, económicas, comunicacionais e defensivas. Engana-se ou engana-nos quem encara o presente e o futuro de modo lírico, cândido e despreocupado. Putin e os seus são mais sofisticados do que os monstros políticos que puseram a Europa a ferro e fogo no século passado. Mas, em combinação com os seus aliados que vivem nas nossas sociedades, são igualmente ou mesmo mais perigosos, pois dispõem hoje de meios que seriam impensáveis no passado.

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