A autonomia digital é a batalha que a Europa não pode perder

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Enquanto o mundo está entretido a contar os “brinquedos” militares e se debate entre o protecionismo agressivo de Trump e a expansão tecnológica da China, a Europa está numa encruzilhada, entre continuar a ser um terreno fértil explorado pelas grandes potências digitais ou se finalmente assumirá o controlo do seu destino digital.

Hoje em dia é difícil imaginar o nosso quotidiano sem os gigantes da tecnologia, em que a Google, a Amazon, a Microsoft, a Meta ou o Twitter/X moldam a nossa vida, não apenas no modo como nos comunicamos, mas também como os nossos dados são armazenados, processados e muitas vezes, acessíveis a outras jurisdições.

O Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD) e o Regulamento dos Serviços Digitais (DSA) foram marcos importantes, mas foram sobretudo medidas reativas. A Europa precisa de mais do que defesas, precisa de construir alternativas sólidas, competitivas e alinhadas com os seus valores democráticos e sociais.

O problema é profundo! Quando ministérios, tribunais e escolas dependem de software extracomunitário, quando os dados sensíveis dos cidadãos estão em servidores controlados por empresas sujeitas a leis como o Cloud Act dos EUA, a soberania europeia é pouco mais do que uma ilusão.

O Nextcloud (alternativa ao Google Drive), o Mastodon (alternativa ao Twitter/X) ou o Proton Mail (serviço de e-mail cifrado sediado na Suíça) provam que há soluções viáveis, mas faltam-lhes escala. A Europa tem de parar de alimentar os monopólios que a enfraquecem e começar a investir no seu próprio ecossistema.

A GAIA-X foi uma boa ideia, enquanto cloud europeia soberana, contudo tem sido bloqueada por burocracia e falta de ambição política. Enquanto isso, a inteligência artificial, as redes 6G e os algoritmos que moldam o futuro são desenhados noutros continentes, com prioridades alheias aos direitos e liberdades europeias. A dependência tecnológica não é apenas uma questão económica, é uma ameaça à democracia.

A dependência digital vai muito além do setor civil. As inovações tecnológicas na guerra, tais como os enxames de drones, os sensores hiperprecisos e os sistemas de inteligência artificial autónomos, estão a reformular por completo o conceito de dissuasão, ameaçando tornar obsoletos os atuais arsenais nucleares. Num futuro onde a precisão, a automação e o controlo de dados ditarão a supremacia militar, a Europa não pode depender de infraestruturas que não controla.

A autonomia digital é muito mais do que uma questão económica ou tecnológica, é uma questão de soberania e de democracia. Não se trata de isolar a Europa, mas de posicioná-la como um terceiro pólo entre dois modelos cada vez mais autoritários: a vigilância estatal chinesa e o capitalismo de dados norte-americano. Para isso, são precisos investimentos audazes, políticas públicas com visão de longo prazo e uma mudança cultural profunda: formar talento, apoiar inovação local, premiar o risco e priorizar compras públicas de soluções europeias.

Cada euro gasto em infraestrutura estrangeira é um voto contra o futuro da Europa. Cada servidor fora do nosso controlo é um elo fraco na nossa cadeia de soberania. Esta batalha não se ganha com discursos em Bruxelas, mas com decisões corajosas e coordenadas em todos os Estados Membros.

Se a Europa falhar este desafio, pagará caro, não apenas com perda de competitividade, mas com uma erosão lenta e silenciosa da sua capacidade de autodeterminação, nos ministérios, nas escolas, nos tribunais e nos campos de batalha. A Europa tem os recursos, os valores e a capacidade, contudo falta-lhe apenas a coragem, que nenhuma tecnologia pode substituir.

Especialista em governação eletrónica

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