A adesão de Portugal e Espanha às Comunidades Europeias vista de Toledo
1. Um marco histórico
A adesão às Comunidades Europeias foi um passo verdadeiramente histórico para Portugal. Era visto, na altura, como fundamental para consolidar a democracia e a opção pela economia de mercado, para reforçar a posição de Portugal na cena internacional e, acima de tudo, para conseguir novas oportunidades de desenvolvimento económico e social.
Na mente de todos estava o acesso das exportações portuguesas ao grande mercado europeu, a atração do investimento estrangeiro e o apoio dos fundos comunitários.
A primeira década de integração europeia de Portugal foi indiscutivelmente uma história de sucesso. Atestam-no os relatórios das instituições internacionais.
Para isso contribuiu a confiança gerada pela estabilidade política no período 1985-1995. Nos primeiros 11 anos de democracia Portugal tivera 16 governos!
Na primeira década de adesão o PIB cresceu à taxa de 4% ao ano, apesar da forte recessão que atingiu a Europa em 1992-93. A União Europeia (UE) cresceu menos, 2,4%. A taxa média de desemprego em Portugal situou-se em 6%. No fim de 1995, a dívida pública atingia apenas 59% do PIB. O rendimento per capita subiu de 53% da média comunitária para 66%.
Os apoios financeiros comunitários foram importantes para o desenvolvimento do País. Mas sem as profundas reformas estruturais levadas a cabo pelo Governo não teria sido possível a transformação da economia e da sociedade portuguesas.
Foram mudanças decisivas para que as empresas portuguesas enfrentassem a concorrência do mercado único europeu e para estabelecer um clima de confiança favorável ao investimento, ao crescimento económico e à dinamização da sociedade civil.
Foi a revisão constitucional de 1989, que pôs fim ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações realizadas após a revolução de Abril de 1974 e ao monopólio estatal da televisão; a reforma do sistema fiscal; a reprivatização de 38 empresas que tinham sido nacionalizadas, reduzindo a estatização da economia portuguesa; a reforma da legislação agrária e a reforma do sistema financeiro.
Portugal e Espanha tiveram a sorte de a Comissão Europeia ser então liderada por Jacques Delors, um grande europeísta. O seu apoio, assim como o do Chanceler Kohl, foi decisivo para firmar o pilar da coesão económica e social, com a intervenção decisiva de Portugal e Espanha. Foi instituído no Conselho Europeu do Luxemburgo, em dezembro de 1985, que aprovou o Ato Único Europeu.
Este Conselho marcou uma nova fase do projeto europeu, ultrapassando a situação que era designada de “euroesclerose”, em que o projeto caíra na primeira parte da década de 80. A adesão de Portugal e de Espanha foi apontada como a força motriz da dinamização do projeto europeu.
Portugal, Espanha, Irlanda e Grécia convergiram naturalmente na defesa do reforço da política de coesão económica e social, que tinha por objetivo assegurar o desenvolvimento harmonioso da Comunidade.
Houve a preocupação de colocá-la de braço dado com a realização do mercado interno, na qual os países mais ricos estavam especialmente interessados.
Felipe González, o Presidente do Governo de Espanha, o país da coesão de maior dimensão, desempenhou um papel importante, no que foi fortemente secundado por Portugal. Ocorreram fortes tensões nos debates sobre a dimensão dos fundos comunitários destinados à coesão, mas Portugal e Espanha conseguiram alcançar grandes vitórias.
Portugal, em concreto, beneficiou globalmente não só com os pacotes Delors, mas também obteve apoios extraordinários a sectores mais fragilizados: o apoio à modernização da indústria portuguesa; o programa de apoio excecional ao desenvolvimento dos Açores e da Madeira (POSEIMA); e um programa de apoio à indústria têxtil portuguesa, particularmente penalizada pelas negociações do GATT, o chamado Uruguay Round.
Mas importa também reconhecer que a adesão de Portugal e Espanha, através do seu conhecimento e estreitas relações com a América Latina, com África, com os países da orla mediterrânica e até com a Ásia, foi importante para a projeção e afirmação externa da UE.
O passo verdadeiramente histórico no aprofundamento da integração foi dado no Conselho Europeu de Maastricht, em Dezembro de 1991.
Entre as alterações aprovadas destaca-se a criação da União Económica e Monetária (UEM) e o seu pilar da União Monetária: um Banco Central Europeu, uma moeda única, o euro, uma política monetária e uma política cambial únicas. Uma construção quase completa de federalismo monetário.
A decisão de Portugal cumprir os critérios de convergência para a integração na Zona Euro como membro fundador foi o resultado de uma análise custo-benefício.
Eram conhecidos os custos:
Portugal prescindia dos instrumentos de política monetária e cambial para prosseguir os seus objetivos próprios de estímulo à produção e ao emprego;
Portugal ficava sujeito a restrições acrescidas na condução de uma política orçamental autónoma, de modo a respeitar o procedimento dos défices excessivos.
Do lado dos benefícios tínhamos:
a eliminação da incerteza cambial e dos custos da conversão da moeda portuguesa nas moedas utilizadas no comércio internacional;
o acesso fácil das empresas e da Administração Pública ao mercado financeiro internacional do euro;
no plano externo, havia o reforço a capacidade de Portugal agir fora do espaço europeu, em particular em África, na América Latina e no Magreb.
Como Primeiro-Ministro do Governo que tomou a decisão de preparar o País para a participação na Zona Euro, cheguei à conclusão de que os benefícios suplantavam os custos, o que foi corroborado por análises independentes então produzidas.
Portugal cumpriu os critérios de convergência para a adoção da moeda única - estabilidade de preços, estabilidade cambial e disciplina das Finanças Públicas - e integrou o grupo fundador da Zona Euro. Foi um passo estratégico da maior relevância.
2. A adesão e as relações Portugal/Espanha
A adesão simultânea de Portugal e Espanha às Comunidades, em 1 de janeiro de 1986, conduziu a uma alteração profunda nas relações políticas e económicas entre os dois países.
Pode dizer-se que foi pela integração que Portugal e Espanha se redescobriram como parceiros e aliados.
Em 1985 a Espanha era apenas o 6.º cliente das exportações portuguesas, atrás da Grã-Bretanha, da Alemanha, da França, dos EUA e da Holanda. Espanha era apenas o 4.º fornecedor das importações portuguesas. No investimento estrangeiro em Portugal, a Espanha ocupava apenas a 7.ª posição.
Era uma situação nada consentânea com a vizinhança geográfica dos dois países.
A eliminação das barreiras alfandegárias e administrativas impostas pela adesão alterou profundamente o relacionamento económico entre Portugal e Espanha.
Acresce que a adesão dos dois países coincidiu com a aprovação do Ato Único Europeu no Conselho Europeu do Luxemburgo, em Dezembro de 1985. Foi a primeira grande revisão do Tratado das Comunidades. Felipe González e eu participámos nesse Conselho com o estatuto de convidados.
O Ato Único Europeu visou a realização plena do mercado interno sem fronteiras, até ao final de 1992, através da eliminação das barreiras à livre circulação das mercadorias, dos serviços, das pessoas e dos capitais.
Em 1995, quando encerrei a minha década de Primeiro-Ministro de Portugal, a Espanha era já destacadamente o primeiro destino das exportações portuguesas e o primeiro fornecedor das importações, tal como se verifica atualmente.
Portugal é o 4.º destino das exportações espanholas. A Espanha exporta para Portugal mais do que para toda a Ásia, para toda a América Latina e para toda a América do Norte.
Hoje, são centenas as empresas de capitais espanhóis operando em Portugal e o mesmo se verifica de empresas portuguesas operando em Espanha e existem muitas parcerias luso-espanholas operando no mercado internacional.
A adesão dos dois países às Comunidades marcou também o início de um novo ciclo das relações políticas entre Portugal e Espanha, para o que muito contribuíram Felipe González e o seu Ministro das Relações Exteriores, Francisco Ordóñez.
Foi um ciclo caracterizado pelo aprofundamento do diálogo político franco e cordial, como é próprio de dois países com uma longa fronteira comum, e pela cooperação e concertação de posições na Europa comunitária, sem pôr em causa as especificidades próprias de cada país.
Portugal e Espanha passaram a pertencer aos mesmos espaços de integração económica e de Defesa e Segurança e os respetivos governos eram chefiados por políticos da mesma geração marcados pelo desafio do progresso económico e social no quadro da integração europeia.
Foi logo em março de 1986 que, na visita de Francisco Ordóñez a Lisboa, foi acordada a realização de uma cimeira entre os chefes de Governo dos dois países.
A cimeira teve lugar em outubro de 1986 na cidade de Guimarães, com a presença de vários ministros portugueses e espanhóis. Aí ficou acordado o aprofundamento do diálogo político e da cooperação em todos os domínios. Foi a primeira das 9 cimeiras a que presidi juntamente com Felipe González.
Ficou desde logo combinada uma nova cimeira, em Madrid, em 1987, na qual se verificou uma total convergência na defesa das reformas propostas por Jacques Delors.
As cimeiras de alto nível entre os dois governos, ao projetarem a imagem de normalidade nas relações entre Portugal e Espanha, estimularam o desenvolvimento das relações entre os agentes económicos e sociais dos dois países e também nas áreas da Cultura e da Ciência.
Depois da cimeira de Madrid seguiram-se, durante o meu mandato de Primeiro-Ministro, as cimeiras em Lisboa, Sevilha, Algarve, Trujillo, Funchal, Palma de Maiorca e Porto.
As cimeiras, que tinham normalmente lugar antes das reuniões do Conselho Europeu, revelaram-se muito úteis para concertar posições em relação às questões comunitárias de interesse comum.
Na grande maioria das questões europeias que se colocaram nos 10 anos em que fui Primeiro-Ministro, Portugal e Espanha tiveram, em geral, posições convergentes.
Podemos dizer que as cimeiras de alto nível muito têm contribuído para que Portugal e Espanha estejam hoje ligados por um denso conjunto de mecanismos de cooperação e de diálogo, bem como de projetos e interesses comuns.
Hoje, nada do que acontece em Portugal é irrelevante para Espanha e nada do que acontece em Espanha é irrelevante para Portugal.
3. Que futuro para a UE?
Defendo há muitos anos que é necessária uma frente europeísta, com convicção, que contrarie os movimentos eurocéticos e populistas em alguns Estados-membros da União.
Creio, também, que a UE não pode dar-se por satisfeita com o que existe. Há que renovar a ambição e o ímpeto de tornar a União mais forte, mais coesa e visível, como acabou por ser no caso da covid-19.
Sobre o futuro, vale a pena destacar a conclusão da arquitetura da UEM, essencial para reforçar o papel do Euro como moeda mundial, para melhorar a competitividade externa da UE e fazer dela um ator global mais forte e credível na cena internacional.
A Zona Euro, o núcleo duro do projeto europeu, deve assumir-se inequivocamente como o motor do reforço do processo de aprofundamento da integração.
Creio que é urgente dar alguns passos. É o caso da conclusão da União Bancária, para reduzir os riscos do sector bancário e para que a política monetária seja única em toda a área do Euro. Estando já centralizado no BCE a supervisão das instituições de crédito, é lógico que aos depositantes seja dada a proteção de um fundo comum europeu.
Impõe-se, também, avançar no aprofundamento da integração dos mercados de ações e obrigações e criar a União dos Mercados de Capitais, matéria que agora é uma responsabilidade da comissária europeia portuguesa, Maria Luís Albuquerque.
O objetivo é evitar a emigração da poupança europeia, diversificar as fontes de financiamento das empresas e melhorar as suas condições de acesso aos mercados financeiros a custos competitivos, para além do crédito bancário.
É também importante dotar a UEM de uma função orçamental comum de estabilização macroeconómica. Isso tornará a UE menos vulnerável à próxima recessão económica global - e nunca sabemos quando chegará, como se viu com a pandemia covid-19. Isso resolveria também a questão da resposta europeia aos choques assimétricos negativos.
A experiência portuguesa das últimas décadas, tal como a de outros países da UE, demonstra que as restrições impostas pela pertença à Zona Euro são um travão virtuoso à falta de transparência das contas públicas e ao enviesamento dos políticos a favor de défices orçamentais e ao adiamento das reformas estruturais que devem ser feitas.
Não há dúvida de que neste momento entre os grandes desafios da UE está a capacidade de assegurar a sua defesa.
Já o era, antes das eleições americanas, mas agora é mais evidente. A UE tem de ganhar escala em indústria de Defesa. A União tem importado de fora da Europa uma percentagem elevada dos equipamentos militares que envia para a Ucrânia.
O reforço da política de defesa vai certamente exigir o recurso à mutualização da dívida europeia, tal como aconteceu com a resposta à crise sanitária e económica provocada pela pandemia covid-19.
A UE precisa de reforçar o seu poder geopolítico, económico e tecnológico para recuperar o atraso em relação aos Estados Unidos da América e à China e defender a prosperidade dos cidadãos europeus e os princípios da democracia liberal.
A União, como um todo, precisa de aumentar o investimento em investigação e inovação para o mercado e melhorar a capacidade competitiva nas áreas tecnológicas estratégicas, como a eletrónica, as telecomunicações e a farmacêutica.
Por outro lado, é fundamental criar uma verdadeira união europeia da energia, como defende Mario Draghi. É igualmente urgente reforçar a coordenação das políticas económicas dos Estados membros. A melhoria da competitividade externa da UE não pode ser alcançada cada um por si.
Vale a pena também olhar para a guerra comercial com tarifas sobre os bens europeus que o Presidente Trump decidiu lançar. Como dizia o Nobel norte-americano Paul Krugman, numa carta enviada à Europa, esta é a oportunidade para a UE se mostrar forte, unida e coesa perante uma atitude sem justificação por parte da Administração americana. Os valores dos desequilíbrios do comércio externo por ela apresentados não são verdadeiros.
Segundo Krugman, a posição europeia nas negociações será mais forte se houver plena consciência da pouca razoabilidade das tarifas anunciadas pelo Presidente Trump, por um lado, e da força e capacidade de retaliar da EU, por outro.
Devemos, no entanto, estar sempre cientes de que a guerra comercial entre países não interessa a ninguém.
Perante estes novos desafios, as respostas positivas que a Europa soube encontrar quando confrontada com crises ao longo dos seus quase 70 anos de integração, dão-nos múltiplas razões para continuar a acreditar no futuro do projeto europeu.
Ex-Presidente da República Portuguesa
---
Texto preparado para a conversa-debate com o ex-Presidente do Governo de Espanha, Felipe González, em Toledo (11.6.2025), na sessão comemorativa dos 40 anos da assinatura do Tratado de Adesão.