600 anos a dançar com toda a gente em simultâneo

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Em 1535, Sylvestro Ganassi publicou, em Veneza, o primeiro tratado para flauta de bisel - Opera Intitulata Fontegara -, que transportava consigo o rótulo inevitável de primeiro tratado em toda a história da humanidade sobre qualquer instrumento musical. É um conjunto de técnicas que integram articulações (a forma como a língua, em particular, e a boca, em geral, se comportam para empurrar o ar para dentro do instrumento, de forma controlada), exercícios de digitação e escalas relativas a um dos mais malditos instrumentos musicais de sempre, simplesmente porque convoca, hoje em dia, a ideia de crianças a tocar flautas de plástico, com digitação alemã (já explico aos incautos o que isto significa) em aulas que muitas vezes simbolizam uma prova de esforço para professores, e um pesadelo para os pais que, nos momentos de inovação ou de exercício musical dos filhos, são esbofeteados por músicas quase sempre inseguras que habitam o imaginário popular, como As Pombinhas da Catrina ou o Frère Jacques. Esta é a minha história em torno das flautas de bisel e uma evocação do momento em que percebi que não são instrumentos de tortura, mas veículos virtuosos para momentos de união comunitária e de expressão sublime de criatividade, aos quais recorreram Johann Sebastian Bach, Georg Philipp Telemann ou Antonio Vilvaldi. E tantos anónimos antes deles que induziram dança e sonhos nas pessoas.

No início da década de 90, comecei a tocar flauta de bisel, durante a adolescência, num período em que qualquer coisa servia para dar forma às ideias, que neste caso eram materializadas sob a forma de música incipiente e desagradável para os ouvidos dos outros.

Até tive momentos de humilhação pública, a tocar o instrumento de forma desabrida. Não me envergonho de nenhum.

Foto: Leonardo Negrão

O instrumento que tinha em casa não era bom, era quase um brinquedo, mas tinha a característica que me levou a aprofundar o interesse nele: tinha digitação barroca.

A maior parte das flautas de bisel que as crianças tocam nas escolas regulares - e não em conservatórios - tem digitação alemã, isto é, os flautistas levantam sequencialmente os dedos de baixo para cima, sem que haja cruzamento de dedos, exceto nalguns meios tons.

Por outro lado, as flautas barrocas têm digitações mais desafiantes, com buracos duplos, numa primeira abordagem, mas conseguem garantir maior estabilidade de afinação em níveis de execução mais avançados.

De qualquer forma, tudo isto tem a ver com convenções e avanços organológicos que permitem instrumentos mais capazes de interpretar obras virtuosas. Mesmo na Fontegara, de Ganassi, a digitação era diferente e levava o instrumentos a extremos na tessitura.

Contudo, não era esse o meu nível na adolescência nem o é agora. Mas a flauta permitiu-me entrar num universo, no final do século XX, que eu não sabia que existia. Em 1998, em Lisboa, descobri bailes tradicionais.

O conceito é bastante simples, resumindo-se a músicos que tocam e pessoas que dançam.

Mas estes momentos eram diferentes. Havia coreografias de vários países, não havia fronteiras estéticas. Aquele mar de gente (poucas dezenas, para ser sincero) dançava viras, fandangos, mazurcas (um ritmo polaco que sofreu uma miríade de variações noutros países, como França ou Cabo Verde; o hino nacional da Polónia é uma mazurca), polcas, muiñeiras (ritmo popular galego que matematicamente encontra ecos em jigs irlandesas, por exemplo) e tantas outras.

Apaixonei-me instantaneamente e comecei a tocar estas músicas. Depois, comecei a compor músicas com base nestes vocabulários.

E, mais tarde, recuperei músicas antigas para oferecer às pessoas que queriam dançar. Uma delas, identificada apenas como Saltarello 2, é uma música italiana, composta algures entre os séculos XI e XIV. A partitura original está na Biblioteca Britânica. Toco-a regularmente e as pessoas dançam. E quando dançam, sinto que danço com todas ao mesmo tempo. Os sons da flauta são antigos. A música, escrita por um anónimo, é proporcional. Faço isto agora, no século XXI, tal como outras o faziam há séculos, da mesma forma e com a mesma atualidade. Com o mesmo instrumento.

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