(4/7) Erros médicos
Errar é humano, os médicos são seres humanos, os médicos erram. No caso dos cirurgiões, os erros podem ter consequências graves, por vezes trágicas. Mas sejamos claros, nem todas as complicações resultantes de intervenções cirúrgicas têm origem em erros médicos. Lembro-me como se fosse hoje, da morte de um jovem obeso de 25 anos, que no pós operatório de uma apendicite aguda, fez uma embolia pulmonar fatal, apesar de ter feito profilaxia anti coagulante adequada. No caso da minha sub especialidade, no pós cirurgia de recessão pancreática, a taxa de fístulas da anastomose pancreática ao intestino, algumas com consequências trágicas, não são zero em nenhum centro do mundo, por mais experiente que seja. Fiz cirurgias cerca de cinquenta anos, aprendi com grandes mestres e formei muitos cirurgiões. Tive complicações, e tenho a certeza que em algumas fui responsável. Nunca por desleixo ou negligência, mas sempre assumidas com enorme sofrimento, e analisadas em reuniões de morbi-mortalidade quase masoquistas, com a finalidade de que não as voltássemos a repetir. Quando a equipa que chefiei numa intervenção de urgência, e salvadora do doente, deixou uma compressa grande na barriga de um doente que seis meses depois tive de reoperar, foi obviamente um erro. O doente pensava que tinha um enorme tumor, e quando na manhã seguinte o fui visitar e lhe disse que não tinha nenhum tumor ficou eufórico. O contentamento levou a que me fizesse os mais rasgados elogios, mas quando lhe disse a razão da intervenção ficou perplexo. O volumoso “tumor” era afinal um enorme abcesso que resultara de uma compressa que lhe tinha deixado na intervenção anterior. Expliquei ao doente que percebia que quisesse mudar de cirurgião, e que tinha um seguro que ia accionar, para que pudesse compensa-lo do meu erro. Pediu alguns minutos para me dizer a sua decisão. Fui ver outros doentes e quando voltei, estava sentado na cama com a sua mulher sentada ao lado de mão dada. Previ o pior. Começou por me dizer que queria que continuasse a ser eu o seu médico, caso me sentisse em condições psicológicas para o tratar, mas eu tinha de concordar com as três condições que me impunha. A primeira é que eu estava proibido de divulgar que a causa do abcesso era uma compressa. Quando fosse abordado pela família (estavam cerca de 20 familiares na sala de espera!), teria de dizer apenas que não se tratava de cancro e que era um abcesso. A segunda é que eu estava proibido de accionar o meu seguro, porque não havendo compressa, não fazia sentido. A terceira, exigia que lhe apresentasse os meus honorários. Confesso que as duas primeiras condições me deixaram radiante, mas que não podia aceitar a terceira, até porque ia informar o director do hospital, para que também as despesas do internamento fossem eliminadas. Uma rápida troca de olhares com a sua mulher e umas curtas palavras levaram a que concordasse. Saí do quarto comovido e muito grato, mas quando já a caminho da sala de espera percebi que a sua mulher saia e me pediu para parar. Em segundos antecipei a razão, ia seguramente dizer-me que a decisão tinha sido precipitada, eu teria de assumir as minhas responsabilidades. Mas o que aconteceu deixou-me em lagrimas. Aproximou-se de mim e abraçou-me com ternura, e ao ouvido disse apenas, coragem Eduardo. Tive de voltar ao quarto e ir lavar a cara e enxugar as lágrimas, não podia enfrentar a família naquele estado. No dia seguinte o director do hospital, foi pessoalmente levar um ramo de flores ao casal e informa-los que nada havia a pagar. Conclusão, ter dito a verdade ao doente e assumido o erro, foi entendido como prova de honestidade e profissionalismo.
Por isso não consigo entender como ter lesado um ureter a uma doente no decorrer de uma histerectomia, possa ser considerado uma consequência normal dessa intervenção, e não como um erro técnico assumido e um seguro accionado. Tal como não posso aceitar que uma doente a quem foi retirado um pólipo uterino, e na sequência desse procedimento, lhe foi perfurado o útero e uma ansa de intestino, não tenha sido logo assumido como um acidente, e se procure uma razão inqualificável. Se falei destes dois casos, são porque eles existiram e são muito actuais. A incapacidade de assumir os erros, é nestes dois casos inaceitável. Os doentes merecem, não só a verdade, como serem ressarcidos. Por isso existem os seguros de responsabilidade profissional. Explicar aos doentes, com verdade, algumas das complicações existentes, pode evitar muitos conflitos. E como disse no início, nem todas as complicações resultantes de actos cirúrgicos, são erros médicos. Por isso é que certos erros têm de ser assumidos, para que aquelas complicações inevitáveis possam ser encaradas de outra forma.
Cirurgião.
Escreve com a antiga ortografia