Opinião. Bloco de Rua Não Tem Abadá
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Opinião. Bloco de Rua Não Tem Abadá

"Nosso amado Carnaval de rua é exemplo disso, pois tem suas raízes no Entrudo, um costume português que chegou ao Brasil no período colonial e se popularizou entre diferentes camadas sociais".
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Texto: Luísa Cunha*

O Brasil tem, nas ruas lusitanas, um bloco de quase 400 mil habitantes, um número que transborda cinco Sambódromos da Sapucaí e ainda sobra para boas baterias furiosas. Desfilamos na cena cultural portuguesa com música, gastronomia, literatura, televisão, e o público vibra com as alegorias brasileiras, desfrutando da bossa nova ao funk, dos filmes e novelas ao Big Brother Brasil, e degustando o molho do samba e dos quitutes do Brasil. Uma diversidade imensa que os brasileiros colocam na avenida em Portugal, uma cultura que abre alas para a integração, mas que, em seguida, apresenta fantasias de isolamento.

Por que as "carnes" do Carnaval e as "carnes" do fado não se misturam? Afinal, o pote de resguardo do samba é um corpo imigrante, ao mesmo tempo que a tradição de sairmos às ruas todo fevereiro tem sangue português. Quem inventou de setorizar esse Carnaval?

Certamente, deparar-se com rodas de samba quase que semanais — de casaco, mas ainda assim com caipirinhas — e manifestações do nosso sotaque por todo lado tem o estandarte de apaziguar as ansiedades de quem chega aqui, despido do brilho carnavalesco. É natural que busquemos aconchego no conhecido, mas usar a grande presença da nossa cultura como comodismo e forma de isolamento social em nichos de brasileiros é um desrespeito à própria essência do que faz nosso enredo único: somos uma mistura.

Esse isolamento não acontece por acaso, sabemos. No entanto, a adaptação plena só ocorre quando há o esforço de atravessar a corda do bloco e misturar a pipoca com quem veste a camisa de uma folia só. Afinal, bloco de rua não tem abadá, e a boa recepção portuguesa ao nosso jeitinho e aos nossos traços únicos demonstra um caminho certo que talvez faça falta usarmos, brasileiros e portugueses, a nosso favor: a cultura pode ser uma poderosa ferramenta de integração.

Entendo que, como toda relação antiga entre culturas tão ricas, nossa história carrega complexidades e, muitas vezes, sentimentos controversos em relação aos irmãos lusitanos, um passado que reverbera feito cuíca na estrutura social brasileira. Ainda há batalhas por reparações históricas necessárias dentro do nosso próprio país, sem dúvidas, mas também não podemos negar que o Brasil e o brasileiro só são o que são porque Portugal esteve lá com suas tradições, assim como tantos outros povos.

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Nosso amado Carnaval de rua é exemplo disso, pois tem suas raízes no Entrudo, um costume português que chegou ao Brasil no período colonial e se popularizou entre diferentes camadas sociais. Como Clementina Cunha destaca em Ecos da Folia, essa festividade era marcada por um espírito anárquico, no qual as pessoas jogavam água, farinha e outros líquidos umas nas outras em meio a brincadeiras irreverentes. No século XIX, a festa começou a ganhar novos contornos com a introdução de instrumentos de percussão, supostamente iniciada por um padeiro português que percorria as ruas com caixas e tambores, acompanhando os foliões que entoavam cânticos. Com o tempo, esses cortejos incorporaram ritmos africanos e elementos da cultura popular brasileira, dando origem aos blocos carnavalescos que conhecemos hoje.

Fato é que: quem bate no peito ou no pandeiro e vai às ruas colorir fevereiro com orgulho de ser brasileiro — sem precisar levar tantas rimas assim — tem de compreender que o resultado dessa mistura não é passível de seleção. Não se separam confetes por cores, não se pode escolher qual parte dessa combinação queremos manter e qual dispensamos como parte da nossa identidade. Somos resultantes de todas as riquezas e senhoras tristezas — desde que o samba é samba, é assim — e a beleza está justamente em adotar todas as nuances.

Portugal, por sua vez, precisa entender que as manifestações culturais brasileiras em solo português são essenciais para uma integração que já não é opcional. O Carnaval que o brasileiro carrega dentro de si é mágico, mas não há truque para nos fazer desaparecer das ruas do país. Essas manifestações são necessárias porque apresentam uma oportunidade de desmistificação e a capacidade de nos enxergarmos uns aos outros sem as fantasias preconceituosas criadas pelos integrantes do bloco "política com rancor".

Felizmente, não faltam mestres-salas encarregados de unir brasileiros e portugueses por meio da cultura. Em destaque, menciono — com nota deeez — o Instituto Pernambuco Porto - Brasil (IPPB), uma associação sediada na cidade do Porto, que tem sido um importante espaço de encontro, promovendo eventos culturais como bailes de Carnaval e festas de São João tipicamente brasileiras de forma gratuita, oferecendo a imigrantes e portugueses um novo terreno de comunhão em culinária, música, danças e tradições. A associação carrega ainda no seu calendário exposições e debates que permitem revisitar nossa própria história e conhecer mais do nosso país, um movimento essencial para percebermos que brasileiros e portugueses possuem um passado ainda mais profundo e interligado do que aparentam na língua.

Como o Carnaval nos ensina, no desfile da vida, ninguém samba sozinho. O enredo da convivência pede harmonia, pede que a bateria brasileira e a portuguesa toquem juntas, cada uma no seu compasso, mas na mesma avenida. Afinal, o baile é, e sempre foi, de todos.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicado à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.

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