Veneza. Como uma gôndola fora de água

A única coisa a quebrar o silêncio é o som dos remos a entrarem e a saírem da água, duas mulheres remam um grande barco de madeira carregado de caixas de frutas, legumes, ovos e pão. Elas levam-nas para as casas daqueles que estão em quarentena, aqueles que não têm permissão para saírem de suas casas.
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A água do Rio Novo, que liga a estação ao Grande Canal e é geralmente a autoestrada dos barcos-táxi, está agora parada, e as raparigas do "Row Venice" mergulham os seus remos na água para a frente e para trás com determinação. Hoje em dia, os canais pertencem-lhes. Elas transformaram o seu "três caudas de camarão", os tradicionais barcos de madeira, que elas usam para ensinar o remo veneziano a curiosos e turistas, num serviço à comunidade há mais de um mês.

Rompendo o silêncio, os sinos tocam as horas e começaram a marcar o ritmo do dia novamente. Veneza é linda. Veneza está terrivelmente vazia. Veneza é para os venezianos novamente.

"A única coisa boa deste período trágico é podermos encontrar-nos, vermo-nos, dizer olá, isso não acontecia há tanto tempo, era sempre impossível reconhecermo-nos entre as multidões de turistas. Nós não nos víamos uns aos outros há 40 anos."

Cinquenta e dois mil moradores misturavam-se com os 25 milhões de turistas que passam pela cidade todos os anos. Hoje, porém, os turistas desapareceram e, quando peço a Lorenzo Della Toffola, conhecido como "O Viking", que me explique a situação, ele mostra-me as mãos: "Pela primeira vez elas estão limpas, não há vestígios de tinta ou trabalho; isto, para mim, é a maior indicação de que algo está errado". Desde há dois meses que as mãos de Lorenzo não estão sujas porque há dois meses que as gôndolas de Veneza estão paradas, congeladas onde estavam, sem ninguém a fazer fila para embarcar.

Enquanto toda a Europa debate e decide sobre horários graduais de reabertura para restaurantes, bares, lojas e museus, há apenas uma cidade que não pode voltar à normalidade: sem turistas, a economia de Veneza é inexistente. Aquele rio de pessoas que chegava todos os dias de comboio, avião, navio ou autocarro foi completamente drenado. Veneza sofria com a carga de cem mil pessoas que chegavam todos os dias, um número insuportável, mas hoje é angustiante ver esse número tornar-se zero.

"O que realmente me impressiona é a Riva del Vin, que se chama assim porque era lá o antigo mercado e eles costumavam descarregar os garrafões de vinho por ali, e está cheia de pequenos restaurantes. Está tudo fechado e ninguém faz ideia de quando será reaberto." Elisabetta Ferrari guia os visitantes há mais de 30 anos, a sua cultura local não tem limites, todos os cantos da Lagoa têm uma história para contar. "A água está cristalina porque não há barcos a motor. Os barcos a remos estão de volta, há muita poesia nisso, mas também muita angústia."

O presidente da câmara, Luigi Brugnaro, continua a repetir que o turismo voltará um dia, mas que devemos apoiar todas as atividades comerciais para que elas tenham os meios para reabrir nessa altura e para que, entretanto, muitas pessoas não percam o trabalho de uma vida.

Lorenzo Della Toffola está no comando do Squero di San Trovaso, a última oficina de manufatura que resta em Veneza, onde as gôndolas são construídas e restauradas. Documentos históricos mostram que esta oficina doméstica está aqui desde antes do século XVII. Os chamados "mestres do machado" - aqueles que transformaram as árvores em barcos - vieram todos da região de Cadore, nos Alpes, e construíram as suas casas no único estilo que conheciam, o das montanhas.

"Nestes meses, geralmente trabalhamos dia e noite para reconstruir o fundo, repintar e aperfeiçoar todos os barcos. Mas todos os 433 gondoleiros de Veneza estão fechados em suas casas, e nem conseguem imaginar quando poderão começar a trabalhar novamente."

Lorenzo acaricia a estrutura de uma gôndola em que estava a trabalhar no início de março, antes de ter de pôr a sua arte em espera; ele começa a enumerar aqueles que foram dispensados ​​do trabalho, postos à deriva: "Eu falei nos gondoleiros, mas também devo mencionar todos os condutores de bacos a motor, cozinheiros, empregados de mesa, lojistas, rececionistas de hotel, porteiros, lojistas, pessoal do alojamento local, assistentes de loja, guias turísticos, artesãos. Sem mencionar os teatros, museus, a Bienal, o cinema, a construção civil. Tem sido um ano terrível: primeiro ficámos em casa por causa da acqua alta, uma coisa nunca vista antes, agora por causa do vírus. Eu admito que me sinto deprimido. Não vejo como vamos sair disto."

Enquanto fala, tenta familiarizar-se com o lugar de onde foi deportado há sete semanas. "Finalmente estou de volta à minha oficina, reabrindo na esperança de que alguém venha. A cada dois anos, todas as gôndolas precisam de ser totalmente repintadas. Demora um mês. Nós costumávamos usar pez, atualmente usamos verniz de madeira. São necessárias dez demãos de tinta, todas aplicadas à mão com um pincel. As gôndolas vivem na água e, se ficam paradas, deterioram-se ainda mais. Normalmente são molhadas constantemente pelas ondas feitas pelos barcos a motor, navios e ferries a vapor; agora, que a água está parada e não chove há dois meses, a madeira secou e as gôndolas estão todas rachadas ou partidas. Além disso, se elas não se moverem, acumulam-se muito mais algas na quilha. Tudo isso renderia muito trabalho para a minha oficina, mas não sei quantos gondoleiros quererão investir na manutenção dos seus barcos sem saber quando voltarão os turistas. E temo que não os vejamos novamente durante um ano."

O olhar de Lorenzo percorre o cenário que o rodeia e ele repete para si mesmo a pergunta que lhe faço: "O que vou fazer agora? Eu estava a construir uma gôndola, está quase terminada. Acho que vamos construir outra depois desta; será o ano dos novos barcos".

A livraria que não fechou nem na Segunda Guerra

Enquanto "O Viking" - a alcunha que lhe deram por ser loiro, ter olhos azuis e ter um pouco de diamante em bruto - estava em casa, com as mãos limpas e preocupado com o que fazer, Giovanni Pelizzato caminhou pelas ruas estreitas e atravessou pontes com os braços cheios de livros.

A sua livraria chama-se "La Toletta", o seu avô abriu-a em 1933 e é um ponto de honra da família que ela nunca tenha fechado, nem mesmo durante os meses mais difíceis da Segunda Guerra Mundial. Então, na quinta-feira, 12 de março, quando chegou a ordem vinda de cima para fechar a loja, ele abriu as persianas antes do amanhecer, cerca de dez minutos antes das seis horas e, para evitar desmanchar-se em lágrimas, preparou um sinal para colocar na janela: "Entregaremos os livros em sua casa todos os dias, exceto domingo, entre as 13 h e as 17 h, depois de recolhermos os pedidos das 9 h às 11 h".

"A minha decisão foi tomada por desespero e instinto", diz Giovanni. "Eu não fazia ideia se alguém iria ligar, se alguém iria querer um livro. No entanto, vi-me a andar sem parar, cheguei aos 20 quilómetros por dia. Sempre ofereci a entrega no próprio dia, mais rápido que a Amazon e, aos 53 anos, descobri recantos escondidos que não conhecia nesta cidade."

As suas caminhadas, carregado de livros, salvaguardaram quase 20% das suas vendas, mas sem os 80% restantes, muitos funcionários serão demitidos e a hipoteca terá de continuar a ser adiada. A loja está prestes a reabrir, mas os turistas e estudantes da universidade de Ca 'Foscari ali perto, fechada como todas as outras universidades, estarão ausentes do cenário.

As inundações da acqua alta de 12 de novembro de 2019 desferiram o primeiro golpe: "Estou com alguma ansiedade e, sempre que chega um alerta, mudo todos os livros para as prateleiras mais altas, um metro e setenta acima do nível do mar, porque a maré alta no pior cenário anterior atingiu 150 centímetros. Mas desta vez a água chegou aos 187 centímetros, destruindo 3800 livros". A história de Giovanni é uma das muitas que estamos a ouvir neste período em que as palavras "desespero" e "respirar" aparecem, porque o desafio para o futuro é manter a água limpa e poder ouvir o som dos remos sem que a cidade ao seu redor morra.

O turismo "toca-e-foge"

É estranho pensar que há apenas alguns meses, o debate era sobre como Veneza poderia viver do turismo sem morrer do turismo. "O impacto dos últimos anos tem sido muito intenso, a cidade estava a perder a sua identidade; hoje vivemos um momento de drama, mas também de reflexão", Elisabetta Ferrari tem a coragem de dizer. "Esta é uma cidade para entender, passear, desfrutar, não é um parque de diversões ou um albergo difuso [uma cidade hotel]."

Para entender o turismo ao estilo "toca-e-foge", basta analisar alguns números: 80% dos visitantes não ficam nem uma noite sequer, e o Palazzo Ducale, o museu com mais visitantes, vende um milhão e trezentas mil entradas por ano. Apenas um em cada vinte e cinco turistas entra neste lugar simbólico da cidade.

Stefano Croce, presidente da associação de Guias Turísticos de Veneza, alguém que ganha a vida graças aos visitantes estrangeiros, não mede as palavras: "Esses grandes grupos chegam, 40 ou 50 pessoas juntas. Eles passam algumas horas aqui, entopem as ruas, tiram uma selfie na Praça de São Marcos, comem alguma coisa num restaurante de comida rápida, compram dois ímanes e deixam Veneza sem nada para além de lixo. Não é verdade que todo o turismo traga riqueza. E os visitantes curiosos, aqueles que gostariam de conhecer a história da cidade e descobri-la, saem rapidamente."

Mas são os venezianos os primeiros a fugir - eles não podem continuar a morar numa cidade onde as lojas estão a desaparecer e onde o fenómeno Airbnb está a tornar impossível encontrar uma casa para alugar: "As empresas normais estão a fechar uma atrás da outra, resta apenas uma loja de calçado masculino em toda a cidade. Para comprar qualquer coisa, um veneziano tem de ir ao continente ou comprar online. Cada vez que uma loja histórica fecha, abre um restaurante de comida rápida, seja kebabs, pizza à fatia ou sanduíches. As casas são transformadas em pousadas ou alugadas no Airbnb, que oferece atualmente nove mil opções de alojamento na cidade, ou seja, cerca de 20% da habitação disponível em toda a cidade. É por isso que os casais jovens ou aqueles que vêm trabalhar já não podem morar em Veneza."

Da Ponte da Academia, observo o Grande Canal - ninguém o navega e ninguém o atravessa, até que aparece um barco da DHL: também aqui as entregas da Amazon se tornaram o mercado número um.

Existem inúmeras propostas de como implementar mudanças duradouras, desde a limitação do número de casas a serem colocadas no Airbnb a um sistema de reservas para visitas diárias: "Muitas pessoas refletiram sobre o assunto, e o ponto crucial é que o número de turistas deve ser compatível com o número de moradores, ou seja, entre 50 e 70 mil presenças por dia. Hoje temos zero visitantes, há um ano eram cem mil. Existe o risco de que, após a grande sede de turistas que afligirá a cidade nos próximos meses, possamos vir a testemunhar um cenário de "vale tudo", sem regras. Mas isso seria um caminho perigoso para Veneza. Políticas inteligentes devem ter a capacidade de gerar mudanças desde o início.

Finalmente, começa a chover, uma dádiva de Deus para as gôndolas secas ao sol desta quarentena; então um arco-íris aparece sobre o Grande Canal. Um auspício para um futuro brilhante, diria eu.

Mario Calabresi é italiano e jornalista. Foi diretor do La Stampa, esteve no início da Digital News Initiative da Google e foi também diretor do La Repubblica, cargo que deixou para se tornar autor freelance. Faz parte do World Editors Forum, no âmbito do qual partilhou este artigo com o DN, em exclusivo para Portugal.

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