Trump e a ciência, episódios de uma relação difícil
O episódio mais recente talvez não se possa considerar bem um embate de Trump com a ciência, mas tão só com o bom senso. Numa conferência de imprensa sobre a situação da covid-19, na passada semana, Trump questionou se não se poderia, de alguma forma, injetar no corpo os desinfetantes que comprovadamente matam o coronavírus.
A intervenção do presidente norte-americano provocou uma torrente de intervenções na comunidade médica e científica, a alertar para os perigos do uso indevido destes produtos. E não só. Até a autoridade de Saúde, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, veio avisar no Twitter que os produtos de limpeza são perigosos para a saúde se usados indevidamente, um aviso que tem estado a ser replicado por outras agências governamentais.
Na última quinta-feira, depois de ouvir um funcionário do governo apresentar os resultados de investigações que indicam que o novo coronavírus parece enfraquecer quando exposto à luz solar e ao calor, Trump fez a sua própria análise da questão. "Vamos supor que consegue trazer a luz para dentro do corpo, através da pele ou de alguma outra forma. E julgo ter ouvido que iria testar isto também. Parece interessante", afirmou o presidente dos EUA.
"E vejo que o desinfetante pode acabar com o vírus num minuto. Um minuto. Haverá alguma forma de o conseguirmos injetar quase como que uma limpeza?", questionou também o presidente norte-americano.
Não é a primeira vez que Trump obriga a comunidade científica vir a terreiro desaconselhar as suas ideias. Antes, foi a apologia da hidroxicloroquina, um medicamento usado no tratamento da malária. "O que têm a perder? Se funcionar seria uma pena se não o fizéssemos mais cedo", chegou a afirmar.
Em 2017, em vésperas de um raro eclipse solar, astrónomos e oftalmologistas repetiram o mesmo aviso: não olhar para o sol sem uma proteção adequada dos olhos. Até a Agência Espacial Norte-Americana (NASA) veio alertar que olhar diretamente para o eclipse poderia provocar danos oculares graves. O que fez Donald Trump perante estes avisos? Precisamente o contrário.
A foto do presidente norte-americano de olhos franzidos, a olhar para o sol, rapidamente correu mundo, despertando inúmeras críticas nas redes sociais pelo mau exemplo dado pelo presidente aos seus concidadãos.
Em setembro de 2019 o furacão Dorian aproximava-se da costa dos Estados Unidos e Donald Trump referia-se profusamente ao assunto. Primeiro, disse não ter a certeza "de já ter ouvido falar sobre a categoria 5" - o Dorian era o quarto furacão de categoria 5 atingir os Estados Unidos desde a eleição do magnata para a presidência.
Mais tarde, Trump escreveu no Twitter que o Alabama seria um dos estados mais fortemente atingidos pelo furacão, uma informação errada que rapidamente foi desmentida pelos serviços de meteorologia.
"O Alabama não verá nenhum impacto do Dorian. Nós repetimos, nenhum impacto do furacão Dorian será sentido em todo o Alabama. O sistema permanecerá muito longe do leste", avisou o Serviço Meteorológico Nacional no Alabama.
Quatro dias depois Trump surge num vídeo da Casa Branca com um mapa com as projeções meteorológicas, com o pormenor de o gráfico apresentar uma linha curva que acrescenta o Alabama à área definida pelos meteorologistas como podendo ser afetada pelo furacão.
Da política à ciência o episódio provocou um coro de críticas, mas o líder norte-americano manteve sempre que as projeções iniciais incluíam o Alabama na área de influência do Dorian.
Se há tema que retrata bem os desencontros entre Donald Trump e a ciência é o das alterações climáticas. Em outubro de 2018, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas publicou um relatório defendendo que o aquecimento global não deveria ultrapassar 1,5ºC, o limite que permitiria ainda evitar grandes desastres climáticos no planeta. Reação de Trump: "Há cientistas que acham que as alterações climáticas existem, outros que não. Há cientistas dos dois lado da barricada".
Pouco depois, em entrevista à agência France Presse, o líder norte-americano afirmava-se como um "ambientalista" e um homem "com um instinto natural para a ciência", que lhe advém do facto de ter um tio que foi "um grande professor do MIT durante muitos anos". "Não falei com ele sobre este assunto, mas tenho um instinto natural para a ciência, por isso diria que há cientistas dos dois lados".
Um mês depois, Trump voltava ao ataque contra as alterações climáticas, questionando como é que havia aquecimento global se o nordeste do país estava sob uma vaga de frio.
O multimilionário norte-americano, que chegou à Presidência em 2016, também rejeitou um relatório feito pela própria administração norte-americana apontando para um cenário de perdas de milhares de milhões de dólares na economia, se não forem tomadas medidas contra as alterações climáticas. Reação de Trump: "Não acredito!". Afirmando ter lido "uma parte" do relatório, Trump garantiu que não tomará medidas para reduzir as emissões de dióxido de carbono, a não ser que outros países também o façam: "Teremos que ter China, Japão, toda a Ásia e todos os outros países. Sabem que [o relatório] se dirige ao nosso país. Agora estamos caminho no mais limpo que alguma vez tivemos [o que é desmentido pelos dados oficiais] e isso é muito importante para mim. Mas se estamos limpos, e todos os outros lugares da terra estão sujos, isso não é tão bom".
Já em março deste ano, Trump publicou um tweet a citar um suposto co-fundador da Greenpeace (o que a organização veio rapidamente desmentir) a afirmar que a "crise climática não é apenas fake news, é fake science".
À Associated Press, Granger Morgan, professor da universidade Carnegie Mellon que já foi conselheiro de Democratas e Republicanos respondeu rapidamente quando questionado sobre que nota daria a Trump em ciência - um "F" [numa classificação de A a F, em que esta corresponde à reprovação].
Para o bioquímico Sudip Parikh, também citado pela AP, Trump parece pôr a ciência e a medicina em pé de igualdade com rumores e anedotas. Misturar tudo isto na comunicação com as pessoas "é terrível", afirma.
Gretchen Goldman, diretora da União dos Cientistas Preocupados do Centro para Ciência e Democracia, defende que as ações de Trump e da sua administração "têm ignorado a ciência, censurado a ciência e manipulado a ciência".
"É diferente de tudo o que vimos em anteriores administrações, diz à AP, apontando "desinteresse e desrespeito" pela ciência. Goldman diz mesmo que o seu grupo já identificou 130 ataques de Trump à ciência.