Governo belga escreve carta ao Pai Natal. "Soubemos que apesar da sua idade avançada, escapou ao vírus"

O governo belga avançou esta quinta-feira com uma medida inovadora, para fazer a pedagogia dos gestos barreira contra o coronavírus.
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O ministro federal da Saúde escreveu uma carta ao São Nicolau, que na Bélgica e em vários outros países, assume o papel de "Pai Natal". E, a ministra federal do Interior associou-se, para dar força à iniciativa.

Na era da desinformação e das fake news, a ideia da maior autoridade executiva do país pode, à primeira vista, provocar um franzir de sobrolho, no país que voltou a liderar mundialmente a contagem de mortes, na proporção do número de habitantes. Mas, a iniciativa tem aparentemente uma intenção pedagógica, na quadra festiva que se avizinha.

Na carta, os ministros revelam que duas leis serão inscritas dentro de dias no "Moniteur Belge", que é o jornal oficial do Reino da Bélgica, permitindo ao "Saint-Nicolas" a violação do "recolher obrigatório" e da quarentena para quem "chega de zonas de risco".

A história que alimenta o imaginário infantil varia de país para país, e até tem ligeiras diferenças em algumas regiões. Mas, grosso modo, reza a lenda que na madrugada de 06 de dezembro, o São Nicolau visita a casa de cada uma das crianças, para deixar clementinas, Speculoos - os biscoitos de canela, gengibre e cravinho - e os presentes de Natal.

A lenda diz também que o "Saint-Nicolas" vem de Espanha, -- que, de acordo com o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças, é um país classificado a vermelho no mapa do risco de infeção.

"Ouvimos dizer que este maldito vírus também criou muitos problemas em Espanha", começa por dizer o ministro da Saúde, para a seguir assinalar com "grande prazer", ter tomado conhecimento que "apesar da sua idade avançada", o São Nicolau "conseguiu escapar do vírus e que ainda goza de boa saúde".

A frase do novo ministro podia até ser interpretada como uma crítica à sua antecessora, Maggie de Blockque liderou a pasta da Saúde, tanto no governo interino como em governos anteriores. Vários setores profissionais da área atribuem-lhe responsabilidade da "degradação" dos cuidados prestados. Também no Parlamento, de Block foi confrontada com os pedidos de explicações sobre o facto de a Bélgica ter liderado mundialmente a contagem de mortes, em função do número de habitantes, a maioria entre os mais velhos, metade do total em lares e casas de repouso.

"Querido São Nicolau" - continuam os governantes - "Espanha está em código vermelho. De acordo com as regras, deve ficar em quarentena durante alguns dias quando aqui chegar".

"Porém, como sabemos que não tem tempo a perder e que precisa de cada hora para preparar os presentes para cada criança, decidimos abrir uma exceção", oferecem, com aparente realismo, os dois ministros, sublinhando que o pacote de medidas inclui também o "Père fouettard" -- que, na Bélgica, uns descrevem como o ajudante do São Nicolau e outros como um alguém que "veio do Congo" e que rouba os presentes(!), como castigo para as crianças mal-comportadas. (Esta parte da história tem sido merecedora de críticas, e de alguma forma, tem vindo a ser adaptada, dadas as referências raciais).

"O decreto real necessário" que permite quebrar a quarentena "aparecerá em breve no Diário Oficial da Bélgica", promete o governo, na carta também assinada pela ministra do Interior, Annelies Verlinden.

Para justificar a excepção, as equipas dos dois ministérios empenharam-se a explicar, com grande realismo que "a viagem [imaginária] no seu barco vindo de Espanha dura 17 dias, ou seja, 7 dias a mais do que pedimos e, portanto, este período é mais do que suficiente como quarentena". Fica, portanto, a nota para o dia-a-dia.

"Um segundo Decreto Real, ainda em preparação, diz respeito ao recolher obrigatório", continuam, adiantando que "na noite de 5 para 6 de dezembro", o confinamento noturno "ainda será aplicado na Bélgica".

"É claro que também sabemos que nessas condições, seria impossível fazer o seu trabalho", refere o governo, que há menos de um mês anunciou medidas contra o coronavírus, que determinaram o encerramento de cafés, bares e restaurantes, e limitam as atividades comerciais ao "essencial".

As lojas de brinquedos ou de roupa para crianças estão, por exemplo, encerradas. Nas grandes superfícies, os corredores de sapatos, ou pijamas estão bloqueados por fitas própria, caixotes ou simples fita-cola. Já o setor alimentar, produtos de primeira necessidade e outros "bens essenciais", os produtos de limpeza ou os corredores de vinhos encontram-se abertos.

Na carta percebe-se que o governo equipara os "serviços" do São Nicolau ao de um setor indispensável, criando "a base legal", que sustentará o imaginário infantil, com a "ratificação do decreto real" que permitirá a circulação "excecional" durante o recolher obrigatório.

O surrealismo da medida oficial, anunciada como um "exclusivo" em mais do que um órgão da imprensa belga, procura um lado pedagógico, recomendando ao bondoso velho imaginário "que mantenha sempre a distância, lave as mãos regularmente e use máscara quando necessário"

"Com a sua mitra e a sua longa barba branca, provavelmente não é divertido. Além disso, um virologista espanhol também nos confirmou que a sua barba o protege suficientemente e funciona como uma máscara. Mas queremos ter a certeza de que não corre risco ao visitar a Bélgica", defende o governo federal, procurando um tom inteligível por uma faixa etária que não tem escapado às consequências da gestão sanitária durante a pandemia.

Com a Bélgica no topo da lista europeia do risco de infeção, o governo foi forçado a prolongar as tradicionais férias escolares após o feriado do dia de Finados. As aulas estão paradas desde então, e deverão ser retomadas na próxima segunda-feira. Algumas escolas anteciparam a medida, devido a infeções e quarentenas entre os funcionários e, alguns dias antes das férias, simplesmente, não abriram.

"Todas as crianças aqui foram especialmente corajosas este ano", elogia o governo, na carta dirigida ao velho imaginário, classificando-as como "muito sábias", apesar do interregno no ensino.

"Na verdade, o dia-a-dia não é fácil: na escola, tudo mudou; por enquanto, não podem ver os amiguinhos, eles não podem entregar-se aos hobbies favoritos", reconhecem os ministros, admitindo, sempre no mesmo registo, que "realmente, -- realmente --, não é divertido"

"Sem falar que eles nem sequer podem ser abraçados pelo avô e pela avô", vincam, aproximando-se de um tom mais sério, que justifica a inusitada iniciativa, salientando que a medida que esperam ver respeitada na quadra festiva serve "não apenas para proteger os próprios, mas acima de tudo para proteger os outros".

No ultimo parágrafo, o governo parece desafiar as famílias as darem um impulso extra à atividade comercial própria da época, forçosamente adormecida pelas medidas restritivas, e pela diminuição da mobilidade, uma vez que o teletrabalho foi tornado obrigatório, "sempre que seja possível".

"Durante estas duas semanas de férias, mães e pais esforçam-se para cuidar ainda mais deles, mas este ano eles merecem a sua visita mais do que nunca", escreve ao personagem da história, apelando à generosidade dos progenitores, pois "cada criança é um herói e, pela primeira vez, não precisa verificar no seu grande caderno para ver quem se portou bem".

"São Nicolau, cuide-se bem e faça o que você faz de melhor: fazer todas as crianças felizes. Estamos a contar consigo", remata o governo, na carta assinada pelo ministro da Saúde, Frank Vandenbroucke e pela ministra do interior, Annelies Verlinden e que, por este último parágrafo, também podia vir assinada pelo ministro da Economia.

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