Salvar a geração covid
A ideia muitas vezes repetida de que a covid-19 é "o grande equalizador" é um mito. Não há igualdade de sofrimento ou de sacrifício durante uma pandemia que está a afetar desproporcionalmente os mais pobres e mais vulneráveis.
E enquanto a emergência sanitária prejudica desproporcionalmente os idosos pobres, a crise educacional sem precedentes causada pela pandemia está agora a afetar mais duramente as crianças mais pobres e a criar uma geração que perderá a aprendizagem. Os confinamentos e outras regras de distanciamento social obrigaram escolas de todo o mundo a fechar as suas portas, afetando um pico de quase 1,6 mil milhões de crianças. Mas enquanto as crianças mais ricas tiveram acesso a alternativas, como a aprendizagem online, as mais pobres não o tiveram. As crianças menos favorecidas do mundo - para quem a educação oferece a única rota de fuga da pobreza - ficaram mais para trás, deixando o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS 4) de garantir uma educação de qualidade inclusiva e equitativa para todos até 2030 ainda mais fora de alcance.
Mesmo antes da pandemia, o mundo estava aquém desse objetivo. Globalmente, quase 260 milhões de crianças estavam fora da escola e 400 milhões abandonaram a escola após os 11 anos. Em algumas regiões, como a África Subsariana rural, poucas raparigas concluíam o ensino secundário, principalmente por causa do casamento infantil generalizado. Quase 50 países não têm leis que proíbem o casamento infantil e muitos outros não cumprem essa proibição. Como resultado, cerca de 12 milhões de raparigas em idade escolar são casadas à força todos os anos.
Quando as escolas reabrirem, há uma boa hipótese de que muitas crianças pobres nunca regessem. A pobreza é a principal razão pela qual as crianças não frequentam a escola, e as repercussões económicas da crise da covid-19 durarão muito mais do que os confinamentos, especialmente para as pessoas mais pobres.
O resultado provável é que mais crianças serão incluídas nos 152 milhões de crianças em idade escolar forçadas a trabalhar, pois 14 países ainda não ratificaram a convenção de idade mínima da Organização Internacional do Trabalho. E ainda mais meninas serão forçadas a casamentos precoces. Quando a epidemia de ébola na África Ocidental, que começou em 2014, fechou as escolas na Serra Leoa, o número de raparigas entre os 15 e os 19 anos que estavam grávidas ou já eram mães quase duplicou, passando de 30% para 65%. A maioria dessas meninas nunca voltou à escola.
Com as políticas certas em vigor, as economias começarão a recuperar, os empregos serão restaurados lentamente e as políticas de proteção social aliviarão a pobreza dos desempregados. Mas há pouca proteção contra os efeitos de uma educação perdida, que podem durar a vida inteira.
Tal como as coisas estão, mais de metade das crianças do mundo - quase 900 milhões de rapazes e raparigas - não conseguem ler um texto simples aos 10 anos. São 900 milhões de crianças que não recebem o conhecimento e as competências necessários para melhorar a sua situação económica quando atingirem a idade adulta. Se não fizermos nada para ajudar a geração covid a recuperar o tempo perdido, esse número poderá facilmente aproximar-se de mil milhões, ou mais. Quando as escolas em Caxemira fecharam por 14 semanas após o devastador terremoto de 2005, as crianças mais afetadas perderam o equivalente a um ano e meio de aprendizagem.
Como nos recomenda o Relatório Global de Monitorização da Educação da UNESCO, publicado recentemente, as crianças que ficaram para trás precisam do tipo de programas de recuperação que na América Latina aumentaram a escolaridade em cerca de 18 meses desde os anos 1990. Mas o apoio necessário custará dinheiro. A menos que colmatemos a lacuna no financiamento da educação, o ODS4 permanecerá fora de alcance.
A UNESCO calcula que, antes da crise de covid-19, 50 países estavam a deixar de gastar o mínimo recomendado de 4% do produto nacional, ou 15% do orçamento público, em educação. O financiamento inadequado de governos e doadores significou que muitos dos 30 milhões de crianças refugiadas e deslocadas à força crescem sem educação, sem nunca pôr os pés numa sala de aula, apesar dos esforços de Educação não Pode Esperar e de outros grupos.
Agora, a pandemia deve reduzir ainda mais os orçamentos da educação. À medida que o crescimento mais lento ou negativo prejudica a receita fiscal, menos dinheiro estará disponível para os serviços públicos. Ao alocar fundos limitados, as despesas urgentes com salvamento de vidas em redes de saúde e segurança social terão precedência, deixando a educação subfinanciada.
Da mesma forma, a intensificação da pressão orçamental nos países desenvolvidos resultará em reduções na ajuda internacional ao desenvolvimento, inclusive na educação, que já está a perder para outras prioridades na alocação de ajuda bilateral e multilateral. O Banco Mundial calcula agora que, durante o próximo ano, os gastos gerais com educação em países de baixo e médio rendimento possam ser entre 100 e 150 mil milhões de dólares inferiores ao anteriormente planeado.
Esta crise de financiamento não se resolverá. A maneira mais rápida de libertar recursos para a educação é através do alívio da dívida. Os 76 países mais pobres devem pagar 106 mil milhões de dólares em custos do serviço da dívida nos próximos dois anos. Os credores devem perdoar esses pagamentos, com a exigência de que o dinheiro seja realocado à educação e à saúde.
Ao mesmo tempo, instituições financeiras multilaterais e bancos de desenvolvimento regional devem aumentar os seus recursos. O Fundo Monetário Internacional deve emitir 1,2 biliões de dólares em Direitos Especiais de Saque (o seu ativo de reserva global) e canalizar esses recursos para os países que mais precisam.
O Banco Mundial, por sua vez, deveria providenciar mais apoio, reabastecendo a Associação Internacional de Desenvolvimento (ou emprestando em seu nome) a países de baixo rendimento e usando garantias e subsídios de doadores dispostos a ajudar, como os Países Baixos e o Reino Unido, que estão prontos para libertar milhares de milhões em financiamento extra para a educação em países de baixo e médio rendimento por meio do Fundo Financeiro Internacional para a Educação.
Nos próximos dias, as ONG e todas as organizações internacionais de educação iniciarão campanhas de "regresso às aulas". A Save Our Future (Salvar o Nosso Futuro), uma nova campanha a ser lançada no final de julho, defende a construção de um regresso melhor, em vez de se restaurar simplesmente o statu quo pré-pandémico. Isso significa atualizar as salas de aula e transformar os currículos, implementar tecnologias eficazes e ajudar os professores a oferecer ensino personalizado. Tornar as escolas mais seguras (mais de 620 milhões de crianças carecem de serviços de saneamento básico nas suas escolas, o que afeta particularmente as raparigas) e garantir refeições escolares (uma tábua de salvação para 370 milhões de rapazes e raparigas) também aliviaria os efeitos da pobreza e melhoraria os resultados educacionais. A Save the Children (Salvar as Crianças) aumentará essa pressão com a sua própria campanha de base focada no alívio da dívida para pagar pela educação.
Mas investir nas escolas é apenas parte da solução. Na Serra Leoa, as redes de apoio para raparigas reduziram para metade a taxa de desistência durante a crise do ébola. Nos países da América Latina, de África e da Ásia, as transferências condicionadas de dinheiro aumentaram a frequência escolar. O último Relatório Global de Monitorização da Educação defende a implementação de programas semelhantes atualmente.
A geração covid já sofreu imensamente. Está na hora de a comunidade internacional dar às crianças as oportunidades que elas merecem. Mesmo perante desafios importantes, continuamos comprometidos em fazer que a nossa geração seja a primeira na história em que todas as crianças estão na escola e a aprender. Agora, os governos nacionais e a comunidade internacional devem intensificar os esforços coletivos para alcançar esse objetivo.
Abiy Ahmed, primeiro-ministro da Etiópia, recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2019.
Gordon Brown, ex-primeiro-ministro do Reino Unido, é enviado especial das Nações Unidas para a Educação Global e presidente da Comissão Internacional de Financiamento da Oportunidade Global de Educação.
© Project Syndicate, 2020