"Que não passemos a ser uma sociedade de medo"
A marcha contra o medo, marcada para hoje, foi cancelada "por razões de segurança". A cidade, a precisar de catarse, irrita-se: isso não é ceder-lhe, ao medo?
Um vento gelado varre a entrada da estação de Maelbeek. As velas apagaram-se, as TV zarparam. Acabaram os diretos do lugar da tragédia, deste sítio onde terça-feira morreram 20 pessoas. Ficaram ramos e coroas de flores, papéis escritos, e pessoas, poucas, que se perfilam aqui em silêncio, num recolhimento breve, tentam reacender as velas ou, como Rodrigo Oliveira, brasileiro que vive em Paris e veio a Bruxelas visitar um amigo, pedem a alguém que lhes tire uma foto. Acocorado junto às flores, Rodrigo faz um ar grave. Já está. Fica a olhar para o resultado no telefone. É para quê, essa foto? "Isto é muito triste. Quis tirar uma foto para mostrar aos meus pais. Vim para ver, né?"
"Bares estavam cheios na sexta"
É. Tão triste que estas duas raparigas, abordadas para uma entrevista, preferem não dizer nada. Já Natacha, 29 anos, belga, não se importa de responder a umas perguntas. (Ah, e fazer perguntas, sempre, e encontrar o que perguntar, sempre). "Vivo no centro, passei aqui e resolvi parar, pensar um pouco." E o que pensou? Hesita. "É evidentemente terrível, isto. Mas era um pouco esperado.
Inconscientemente estávamos um pouco preparados. Nas primeiras semanas depois do atentado de Paris, em novembro, quando a cidade esteve toda parada, ninguém saía de casa, pensávamos nisto. No que faríamos. Íamos a concertos - eu trabalho na organização de concertos -, íamos a um bar, a um restaurante e lembrávamo-nos. E agora, quando já não esperávamos, aconteceu."
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E mais esta ironia: "Depois dos atentados de Paris a cidade esteve fechada. Agora que foi aqui continuámos a funcionar. As pessoas têm necessidade de sair, de se encontrarem. Ontem, por exemplo, saí para beber um copo e os sítios estavam cheios. Foi reconfortante. E as pessoas estão muito simpáticas umas para as outras. Espero que se mantenha este sentimento de solidariedade." Em todo o caso, a marcha contra o medo, marcada para domingo (hoje) às duas da tarde foi cancelada. "Que pena. Acho que tínhamos necessidade de a fazer. Mas cancelaram porquê?" Por motivos de segurança: a cidade considera que não tem efetivos policiais que cheguem para fazer a segurança dos milhares de pessoas esperados. "Ah. A segurança é muito importante, claro", comenta Natacha, desiludida. "Mas tenho receio de que possamos evoluir para uma sociedade como Israel, em que há a obsessão da segurança, muito medo e muito racismo. Espero que encontremos a medida justa, que não passemos a ser uma sociedade de medo. Até porque por mais que se faça não é possível evitar que alguém se tente explodir."
"Isto vai reforçar o populismo"
"Fazemos uma marcha contra o medo e cancelamo-la por medo?"; "Quem é que ganha? Os terroristas!" As mensagens na página de Facebook da Marche contre la peur, com pouco mais de duas mil presenças confirmadas, exprimem a frustração dos que se preparavam para um acontecimento semelhante à manifestação de 11 de janeiro em Paris. E há quem garanta que irá lá, indiferente aos pedidos do ministro do interior, do burgomestre de Bruxelas e dos próprios organizadores do evento, que, atendendo ao estado de ameaça de nível 3, dadas as investigações em curso e a capacidade policial existente (...) convidam os cidadãos a não aparecerem amanhã... E a adiar a sua manifestação para daqui a algumas semanas."
Lucien Culot, 28 anos, abana a cabeça. "Tenho muita pena. Em Paris em janeiro houve aquela marcha muito forte. Estas coisas são um ritual de passagem. Precisamos delas. Anulá-la é passar a mensagem de que há medo." Lucien é informático nos serviços de transportes da cidade e mora perto da Praça da Bolsa, onde veio com a mulher e o filho de oito meses. "Tinha de vir aqui. Emocionalmente era-me necessário. Estive a trabalhar todos os dias, mesmo no dia dos atentados, e o meu escritório é perto da estação de Maelbeek. É tudo muito próximo, afetou-me muito." Não há uma sensação de repetição nestas celebrações pós-atentados, em que as pessoas se juntam numa praça e cantam, acendem velas, depositam flores e poemas e dão entrevistas e fazem marchas? Lucien sorri. "Não estive na Praça da República em Paris. Para mim é a primeira vez."
Atrás de Lucien passam dois soldados de camuflado, completamente equipados para a guerra, enormes metralhadoras ao peito, olhar cauteloso, frio, a evitar fitar os circunstantes. "A pergunta que faço é: quando é que vamos deixar de precisar deles?" Suspira. "É preciso refletir sobre tudo isto de forma construtiva. E não devemos agir sob o efeito da emoção, não devemos tentar encontrar culpados instantâneos - as responsabilidades são demasiado partilhadas para isso - , mudar leis à pressa. Até porque os especialistas reconhecem que é inútil mudar as leis. Melhor pensar: qual o objetivo, a causa que move estas pessoas, estes terroristas? Para parar isto é necessário compreender. Analisar os argumentos que usam para os recrutar. E não ceder à violência e ao ódio e ao populismo. Claro que vão aparecer, como o discurso anti-refugiados. Mas, sabe? Estive algum tempo na América e tenho lá um amigo jornalista. Liguei-lhe a seguir aos atentados daqui para lhe dizer que são coisas como estas a principal razão para não votarem no Trump. Mas isto vai reforçar os discursos populistas, que já estavam em crescendo. Não sei o que esperar do futuro." Olha o filho no carrinho, ele, a criança e a mulher contra o fundo de pequenas velas, cada vez mais brilhantes na noite que cai.