Idalmiro da Rosa: O nosso cônsul na cidade onde um português é herói
Neste verão o DN republica algumas das reportagens integradas na rubrica sobre portugueses e luso-americanos de sucesso 'Pela América do Tio Silva'. Este artigo foi publicado originalmente a 25 de agosto de 2017.
O carro de Idalmiro da Rosa avança já de noite por San Diego, pela Avenida Portugal, e o condutor explica-me, eu mal acabado de aterrar na Califórnia, que foi uma grande conquista da comunidade portuguesa o batismo daquela artéria "com o nome do nosso país". O que o engenheiro português de 63 anos nascido no Pico mas chegado jovem à América não me conta é que foi ele um dos que mais lutaram pela mudança da toponímia, uma modéstia que é tão marca de Idalmiro como o seu amor a Portugal.
Ora, o destacado membro da comunidade, com responsabilidades várias ao longo das décadas tanto no Festival Cabrilho como nas Festas do Espírito Santo, tornou-se há pouco cônsul honorário de Portugal em San Diego, algo que lhe dá, conta, "um grande orgulho, mas também uma grande responsabilidade. Faço isto por amor a Portugal". E agradece a Nuno Mathias, até meados deste ano cônsul em São Francisco, o empenho para que a atribuição do cargo de cônsul honorário viesse beneficiar os portugueses de San Diego.
Alertado por Miguel Vaz, diretor da FLAD, de que um jornalista do DN de Lisboa iria em reportagem a San Diego, Idalmiro logo me enviou um e-mail, que li na escala feita em Nova Iorque, a informar que me esperaria no aeroporto. E lá está. Apertamos as mãos e pergunta-me se estou muito cansado ou tenho energia ainda para beber uma cerveja no centro da cidade. Ignoro as longas horas de voo desde Lisboa e alinho. Mas primeiro Idalmiro leva-me ao hotel, em Shelter Island, para deixar as malas no quarto e tomar um duche.
É depois a caminho do Gaslamp Quarter, o coração boémio de San Diego, que passamos pela Avenida de Portugal, também pelo Salão de Festas português e por uma pequena capela dos pescadores portugueses que, sei agora, tornou-se património cultural, outro motivo de satisfação para a comunidade, descendente em grande parte de atuneiros e com raízes nos Açores, como é o caso de Idalmiro, nascido na ilha do Pico.
O Barleymash, meio restaurante meio bar, está apinhado. Gente sobretudo na casa dos 20 e dos 30 anos que bebe enquanto ouve música. A tocar estão DJ Who e Paulo da Rosa. "É o meu filho", diz Idalmiro. Engenheiro como o pai, Paulo tem apostado na música com algum sucesso. E parece ser coisa de família. Amanda, a irmã, estudou Relações Internacionais mas também canta. Estou a ver a dupla quando Paulo me surpreende ao começar a tocar guitarra (rock meets electronic soul, é como descrevem a sua performance). Idalmiro, entretanto, passa-me uma garrafa de Corona, fresquíssima. Cerveja mexicana, ou não ficasse Tijuana mesmo aqui ao lado.
No dia seguinte, depois de ir em reportagem até à fronteira com o México, regresso a San Diego. Encontro-me com Idalmiro no edifício da câmara, onde trabalha há vários anos. Temos jantar marcado na sua casa em Point Loma, zona tradicional de portugueses, onde irei conhecer Filomena, a mulher, e Amanda. Paulo também estará. "Conheci a Filomena numa festa no Norte da Califórnia. Uma amiga minha da escola nos Açores conhecia-a e apresentou-me. Estamos casados até hoje", conta o picoense Idalmiro. Filomena é de São Jorge, outra das ilhas açorianas.
O jantar é no terraço da casa. E junta--se a nós "o primo Zé Duarte". Bom conversador, trabalha numa escola mas também é homem dado à música, conta-me Idalmiro. Na juventude, ambos tocavam, depois foi Zé Duarte que continuou com o hobby e até esteve neste verão a fazer uma série de espetáculos nos Açores. Percebe-se onde foram buscar Paulo e Amanda o gosto pela música.
Por entre umas Sagres, também uns belos pedaços de queijo da ilha, Idalmiro fala-me de como começou a comunidade portuguesa em San Diego: "Chegaram famílias no final do século XIX. Sabe-se do casal Madruga, oriundo do Pico. Daí em diante continuou a chegada de açorianos. Mais picoenses. E a certa altura começaram a vir portugueses das comunidades da costa leste, gente de ascendência madeirense. Eram do Paul do Mar. Também chegaram continentais." Uns dias depois, Idalmiro há de apresentar-me a Carlos Graça, setubalense como eu, antigo pescador de atum que passa férias todos os anos com a mulher mexicana, Lupita, entre Troia e a Arrábida.
A frota de atuneiros trouxe prosperidade à comunidade portuguesa. "Ganhava-se muito, muito dinheiro. Na época fazia-se comparações e dizia-se que um pescador de atum ganhava mais do que um congressista", relembra Idalmiro. E se os pais iam para a pesca, os filhos também. Contudo, não foi esse o caminho de Idalmiro. "Era muito tentador ir para o mar e eu devo o que sou hoje aos meus pais, que sempre quiseram que eu fosse para a escola e tirasse um curso e não fosse para a faina."
Idalmiro chegou a San Diego com a família ainda miúdo. O pai era faroleiro no Pico e sócio em três barcos e, quando se instalou na América, a ideia não era ir para o mar mas sim trabalhar no estaleiro onde se construíam os atuneiros. Mas um irmão comprou um barco e desafiou-o. Houve conversa em casa, com a mulher, e, conta Idalmiro, "a minha mãe aceitou que o meu pai fosse para o mar devido à melhor oportunidade financeira. Ele chegou a ser engenheiro maquinista com o irmão".
Idalmiro chegou a trabalhar nos estaleiros, mas sempre a estudar. Primeiro aventurou-se na Arquitetura, depois em Engenharia. Para os dois filhos também sempre ambicionou uma vida longe do mar (um monumento em Shelter Island recorda os mortos em naufrágios e a maioria dos nomes são de portugueses). Paulo e Amanda cresceram a fazer o percurso escolar em San Diego, todo em inglês, mas a ouvirem falar português em casa. Até certa altura, os avós viviam com eles, o que tornava ainda mais obrigatório o uso do idioma entre a família. "E quando os meus pais em 1985 voltaram para os Açores, o Paulo e a Amanda iam lá de férias, o que os ajudava a continuar a praticar o português", acrescenta Idalmiro. Os dois jovens têm dupla nacionalidade e "são chegados a Portugal", garante o pai, cheio de orgulho. E um momento de grande festa em San Diego foi no verão passado, quando Portugal se tornou campeão europeu de futebol. "Foi uma euforia", uma grande alegria, diz este "benfiquista a 100%", mas para quem naquele dia o único clube que havia era mesmo Portugal.
Próspera e bem integrada, a comunidade portuguesa em San Diego tem como momento grande do ano, além das Festas do Espírito Santo, o Festival Cabrilho, que homenageia o navegador português que em 1542, ao serviço da coroa espanhola, foi o primeiro europeu a avistar e a pôr o pé na atual Califórnia. Acontece sempre em finais de setembro, há 54 anos, mas, nota Idalmiro, "desde 1892 que se fazem celebrações, foi quando se assinalaram os 350 anos da descoberta". E uma imponente estátua de João Rodrigues Cabrilho destaca-se num promontório em Point Loma.
Iniciado pelo Portuguese Americans Civic Club e pelo Cabrilho Civic Club, o Festival dedicado ao português tem evoluído ao longo dos anos, com a Marinha americana, muito presente em San Diego, a associar-se. Tem-se transformado também num festival intercultural, em que estão os portugueses, os espanhóis, os mexicanos, os americanos e uma tribo índia. "São os kumeyaays, e com eles são ao todo cinco nacionalidades que hoje participam no Festival Cabrilho", explica-me Idalmiro. É com ele que visito o local onde está a estátua do navegador transmontano. A nacionalidade portuguesa foi-lhe atribuída por um historiador espanhol coevo e não admira, pois Portugal forneceu muitos navegadores à coroa espanhola, como Fernão de Magalhães, mas há investigadores que procuram um suposto nascimento na Andaluzia, o que preocupa um pouco a comunidade portuguesa de San Diego, incluindo Idalmiro. Mas não será por causa de uma polémica académica que Donald Valadão, todos os anos o luso-americano encarna o navegador Cabrilho no festival, vai deixar de ter o seu momento de glória.
Antes da despedida a Idalmiro, visito a frente marítima de San Diego. Uma estátua enorme reproduz o célebre beijo em Nova Iorque, em agosto de 1945, a celebrar a vitória americana na Segunda Guerra Mundial. O marinheiro que beija a enfermeira, soube-se mais tarde, chamava-se George Mendonsa (assim mesmo) e era um lusodescendente de Rhode Island, no outro lado da América.