O marinheiro que se fez chef e conquistou a Florida

Um apaixonado da cozinha portuguesa, Carlos Gabriel Abreu decidiu mudar aos 45 anos. E não se arrepende nada de ter dado ouvidos à sorte. "Tenho uma boa vida"
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Quando o Irma se aproximava de Miami, Carlos, que durante anos conviveu de perto com tempestades, habituado que estava ao mar e aos seus caprichos, desvalorizava o poder daquele que, em setembro, se tornou o maior furacão alguma vez visto por aquelas bandas. E foi da janela de um 21.º andar numa torre na baixa da cidade que assistiu a toda destruição. O Irma fez 60 mortos, deixou a cidade sem energia, "até arrancou partes de alcatrão, árvores centenárias, casas", relatava mais tarde Carlos, num dia de céu tão azul que tornava difícil acreditar no que acontecera apenas horas antes. "Em 30 anos de mar nunca tinha visto nada assim." Felizmente, a sua moradia em Coral Way resistiu à chuva e aos ventos e hoje Carlos e a família voltaram a gozar todos os confortos que em Portugal "nunca sonharam poder ter" mas que a vida nos Estados Unidos torna "simples".

Com 51 anos feitos em agosto, Carlos Gabriel Abreu está a cumprir a sua segunda vida, como um dos cerca de dois mil portugueses que constituem a comunidade na Florida. Uma mudança que aconteceu mais por impulso do que fruto de um planeamento cuidado, provocada pela sua insatisfação com o estado das coisas e não por verdadeira necessidade. É um daqueles casos em que somos obrigados a acreditar na sorte. Foi o próprio destino que interveio e lhe arrancou as raízes de Lisboa para o fazer crescer com cores mais vivas do outro lado do oceano.

Conta-me a sua história à mesa do Old Lisbon, cujos generosos pratos, todos confecionados com ingredientes portugueses - do azeite ao bacalhau, passando pelo vinho -, têm a sua assinatura. Pelas paredes forradas a azulejo, uma delas com a imagem das caravelas a sair de Belém para o mundo, para alegria de americanos, brasileiros e hispânicos de origens diversas que enchem a sala a uma segunda-feira à noite, ecoam fados de Amália, Mariza, Mísia, Carlos do Carmo, Ana Moura.

Em plena crise económica e financeira, e apesar de ter emprego, "vivia agoniado com tudo o que se passava no meu país". Acostumado a ir a Miami, onde "adorava passar férias", saía-lhe de vez em quando que um dia era aquela a vida que gostava de ter mas nunca lhe passara realmente pela cabeça mudar-se. Acontece que foi precisamente esse o caminho que se lhe abriu à frente.

Nascido em Lisboa e criado na Ericeira, aos 16 anos Carlos Gabriel Abreu decidiu dar-se como voluntário para a Marinha. "Viajei pelo mundo inteiro", recorda com prazer, sublinhando desde logo que a coisa de que mais gostava, e à qual rapidamente percebeu que devia dedicar-se, era a cozinha. O tempo foi passando sem grandes sobressaltos, até que começou a sentir aquele bicho-carpinteiro, aquela dormência de fazer mais, diferente.

Nessa altura, já como militar na reserva e tendo feito carreira como cozinheiro do chefe do Estado-Maior da Armada e depois integrado na cozinha do Faia restaurante de fados no Bairro Alto, numas férias em Miami calhou almoçar no Old Lisbon. E identificou-se de tal maneira com a comida e o ambiente que dias depois enviou um e-mail para o dono do restaurante, Carlos Silva, emigrado nos Estados Unidos há décadas e que não conhecia de parte alguma. Perguntava-lhe se estava interessado em ter um novo cozinheiro e a resposta que recebeu entreabriu a porta a dois anos de negociações, que culminaram com um encontro em Alcobaça. "Ele disse-me que estava sempre interessado em bons profissionais e andámos com e-mails para cá e para lá até combinarmos encontrar-nos e finalmente eu vim a Miami para falarmos mais a sério."

Entretanto já conseguira convencer a (segunda) mulher, Ana, a emigrar - com 35 anos e um filho de 2, formada em Jornalismo, com uma pós-graduação em Marketing Político e a trabalhar em eventos, não foi tarefa simples. Mas Carlos não é homem de desistir e lá levou a sua avante. Pouco depois, com a ajuda do novo patrão, Carlos Gabriel Abreu dava entrada ao pedido de visto por três anos - "daqueles que são dados aos artistas", especifica - e quando esse tempo passou avançou para a autorização de residência para ele e para a família, que acaba de garantir.

E a mudança nem custou muito, tendo em conta que conseguiu encontrar uma casa com jardim e uma piscina para os miúdos brincarem - o mais novo, hoje com 4 anos, já nasceu nos Estados Unidos -, e no restaurante está rodeado de portugueses, ainda que, retrato fiel da cidade, entre os cerca de 50 empregados do grupo também haja alguns cubanos. "Vim para cá a falar inglês e agora só falo espanhol", brinca.

Em quatro anos ali, Carlos Gabriel Abreu já conseguiu mais do que em toda uma vida em Lisboa. Chef executivo dos restaurantes Old Lisbon, que já são "quase quarto" - "Estamos a ver localizações e provavelmente vamos abrir em Fort Lauderdale, onde há uma comunidade portuguesa com força" -, passa a maior parte dos seus dias no de Coral Way, um bairro sossegado de casas baixinhas com jardim. Mas semanalmente vai passando revista aos outros dois restaurantes, aos quais "trouxe método e organização, que ali não existiam". Ainda assim, é na cozinha, entre tachos e panelas, onde o aroma a coentros não desmente a origem dos pratos, que se sente bem. A criar novas receitas ou simplesmente a dar vida aos mais tradicionais petiscos nacionais, incluindo sardinhas assadas, polvo à lagareiro, amêijoas à Bulhão Pato, costeletas de cordeiro, pastelinhos de bacalhau com feijão-frade, caldo-verde, peras bêbedas e pastéis de nata. E mesmo para quem chega de Portugal, posso comprovar que vale bem a experiência. A comida que sai das mãos de Carlos é surpreendentemente deliciosa.

Numa terra onde tudo abre e fecha com uma enorme facilidade, encontra a chave do sucesso dos Old Lisbon na qualidade dos produtos e na antiguidade da casa. "Às vezes às onze da noite ainda temos pessoas na fila para jantar", conta, deixando cair com orgulho que entre os clientes da casa se contam pessoas tão importantes como o superintendente das escolas públicas de Miami-Dade. "Nós aqui funcionamos quase como se isto fosse um consulado informal de Portugal. Os americanos e os turistas vêm, sentem-se bem recebidos, gostam da comida e acabam a perguntar todo o tipo de informações sobre o nosso país." E se ali voltam depois de passarem por Portugal, levam fotografias e agradecimentos sentidos.

Quanto a Carlos e à família (Ana trabalha agora no mercado de produtos portugueses que abriu no restaurante), estão totalmente ambientados. Os miúdos falam inglês como português - "fazemos um esforço para os manter ligados ao seu país e se nós só lá conseguimos ir 15 dias por ano, eles vão com os avós todos os verões a Portugal e ficam os três meses de férias" - e a qualidade de vida que conquistou permite-lhe passar muito mais e melhor tempo com os rapazes do que conseguia com os dois filhos mais velhos, uma rapariga de 24 anos (a estudar Biologia) e um rapaz de 20 (em Relações Internacionais). A ganhar "três vezes o que recebia em Portugal" e a viver num condomínio fechado "com todas as comodidades", Carlos ainda acompanha os pequenos no futebol e nas atividades escolares e extracurriculares, além de, em períodos de férias mais curtos, os levar a conhecer os Estados Unidos e arredores. E aos mais velhos, consegue "trazê-los cá de seis em seis meses".

Ficarem por Miami ainda não passa de uma possibilidade, mas que Carlos, a dois anos de passar à reforma, não põe de parte, sobretudo pelas oportunidades que existem nos Estados Unidos. "Aqui só não vence quem não quiser trabalhar. Ao princípio estranhava um bocado certas diferenças culturais, receber de 15 em 15 dias, mas habituei-me e hoje até acho que é mais fácil para nos organizarmos. E apesar dos problemas que todos conhecemos, como as armas e o serviço de saúde, estou convencido de que o sistema americano, que premeia sempre aqueles que se esforçam, é o melhor que existe." Mesmo com Donald Trump a liderar? Como muitos dos europeus que já vivem nos Estados Unidos, Carlos não vê que da sua presidência venham grandes males à América.

E ainda que não concorde com todas as decisões do novo presidente, acredita que Trump, empresário de sucesso, irá realmente contribuir para melhorar a economia do país depois dos anos de crise que também ali se viveram.

Carlos Abreu

Nascido em Lisboa e aluno na D. João V, na Damaia, é da Ericeira, onde cresceu, que Carlos Gabriel Abreu guarda mais memórias dos tempos de miúdo. Alistou-se na Marinha aos 16 anos e depressa percebeu que sua vida tinha de passar pela comida. Foi cozinheiro do chefe do Estado-Maior da Armada e passou pelo Faia, no Bairro Alto, antes de decidir emigrar para os Estados Unidos. Conhecia Miami de férias e foi aí que decidiu viver. Benfiquista convicto, é há cinco anos chef executivo dos restaurantes Old Lisbon, onde assina pratos tradicionais portugueses que surpreendem igualmente americanos, turistas e visitantes portugueses.

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