O homem que já pagou 245 mil euros em multas de muçulmanas
As imagens captadas numa praia de Nice vieram deitar mais achas para a fogueira. Quatro polícias armados terão obrigado uma mulher a despir um suposto burquíni. "Não se percebe que valores franceses estão a ser defendidos. A liberdade não é. A igualdade e a fraternidade também não. As mulheres são confrontadas com a escolha entre vestir aquilo que querem ou retirarem-se dos espaços públicos", escreve, em editorial, o britânico The Guardian. A polémica serviu para voltar a trazer para a agenda mediática um homem, Rachid Nekkaz, conhecido por pagar do seu bolso as multas aplicadas às mulheres que violam as leis sobre as indumentárias em França.
"Antes de mais quero dizer que sou contra o niqab e o burquíni. Não representam a melhor estratégia de integração na sociedade europeia, especialmente em França, que está a tornar-se cada vez mais islamofóbica. Dito isto, jamais poderei aceitar que os políticos usem o medo do Islão para reprimir liberdades individuais apenas com objetivos eleitorais", explica Nekkaz em declarações ao DN. "Não consigo fazer que 577 deputados franceses ganhem juízo, mas sou capaz de contrariar a loucura antimuçulmana pagando as multas destas mulheres", acrescenta, quando questionado sobre o que o levou a tomar a atitude de pagar as coimas.
Foi em 2009 que o então presidente Nicolas Sarkozy avançou com uma proposta para banir o uso do véu islâmico integral em espaços públicos. A lei entrou em vigor em 2011. Desde então, Nekkaz já pagou 1165 multas em França, 268 na Bélgica, duas na Holanda e uma na Suíça. A soma que lhe saiu do bolso ascende a 245 mil euros. Mais recentemente, a proibição do uso do burquíni imposta por várias cidades costeiras francesas também já o fez desembolsar dinheiro.
"Nos últimos dez dias paguei cinco multas em França pelo uso do burquíni, cada uma no valor de 38 euros, mas estou à espera que cheguem muitas mais", explica ao DN.
Rachid Nekkaz não hesita em atacar o Estado francês: "Parece que o sonho dos políticos seria alterar a Constituição para banir o Islão. Sim, os políticos franceses estão em guerra com as mulheres muçulmanas. São os mesmos políticos que acham que todos os homens muçulmanos são terroristas."
Rachid Nekkaz nasceu em 1972 nos arredores de Paris, filho de argelinos que tinham emigrado para França. Depois de estudar História e Filosofia na Sorbonne, começou a construir o património financeiro com investimentos em startups e no mercado imobiliário.
Por duas vezes manifestou a intenção de candidatar-se ao Eliseu, mas acabou por renunciar à nacionalidade em 2013. No ano seguinte entrou na corrida das presidenciais argelinas. Fez campanha mas não chegou a ir a votos. Os críticos dizem que a atitude de pagar as multas tem um lado egoísta e que pretende apenas promover-se no espaço mediático. "Esses são os mesmos que fazem passar leis antimuçulmanas para conseguir os votos da direita", resume Nekkaz ao DN.
Mayor de Londres contra a lei
Nicolas Sarkozy, que nesta semana anunciou que será candidato às primárias da direita, veio a público partilhar a sua opinião sobre o uso dos burquínis. "Trata-se de um ato político, um ato militante, uma provocação. As mulheres que o usam estão a testar a república", afirmou numa entrevista ao Le Figaro.
Nekkaz, nas respostas por e-mail às perguntas do DN, não poupa nas palavras para atacar o ex-presidente, que apelida de "delinquente constitucional". Relembrando que o burquíni não esconde a cara de quem o usa, diz que os comentários de Sarkozy são "escandalosos". Para Nekkaz, "o traje de banho em causa é uma tendência de moda que existe há dez anos".
Mas Nicolas Sarkozy não foi o único político a alinhar na batalha contra o burquíni. Sublinhando que a França está "entalada numa guerra de culturas", Manuel Valls também defendeu ontem a proibição do traje. "É um símbolo da escravidão das mulheres", reiterou o primeiro-ministro.
Nada poderia ser mais errado para Nekkaz. "Em França, nenhuma mulher que usa o niqab ou o burquíni é obrigada a fazê-lo. E quero também referir que 66% daquelas que vestem o niqab em França e na Europa são mulheres brancas e europeias que se converteram ao Islão e que não têm quaisquer raízes árabes ou muçulmanas."
Resta agora saber o que dirá hoje o Conselho de Estado, que em França tem a dupla função de aconselhar o executivo na elaboração de lei e que, ao mesmo tempo, funciona também como supremo tribunal administrativo. Depois de apelos apresentados pela Liga dos Direitos do Homem (LDH) e da Comissão contra a Islamofobia, está previsto que o órgão se pronuncie hoje às 14.00 de Lisboa. "Fará jurisprudência e definirá o quadro de poder das autarquias no que diz respeito às regras sobre o uso de sinais religiosos no espaço público", afirmava ontem ao diário Le Monde Patrice Spinosi, advogado da LDH.
De visita a Paris, Sadiq Kahn, o primeiro muçulmano a ocupar o cargo de mayor de Londres, também criticou a decisão das autarquias francesas que decidiram banir o burquíni das praias. "Tenho uma posição muito clara sobre este assunto. Ninguém deve dizer às mulheres o que elas devem ou não vestir. Ponto final. É tão simples como isto. Não estou a dizer que sejamos perfeitos, mas uma das alegrias em Londres é que nós não nos limitamos a tolerar a diferença. Também a protegemos e celebramos", disse ao Evening Standard.