"O futuro desenvolvimento da defesa europeia poderá estar em risco"

Entrevista a Isabel Ferreira Nunes, do Instituto da Defesa Nacional. Participa esta quinta-feira às 18.00 no webinar Europa em Tempos de Covid-19, com Riccardo Marchi, do CEI-ISCTE, e Ana Paula Brandão, do CICP-EEG-UMinho. A moderação é de Sofia Martins Geraldes, do CEI-ISCTE. O evento faz parte de um ciclo sobre os impactos internacionais da pandemia organizado pelo ISCTE e IDN com o apoio do DN. Aberto ao público (inscrições <a href="https://bit.ly/3dkXuOO?fbclid=IwAR18-HW7T3iHygcxEAMChH0UDv1_nvu1dx0AoGx_UCt81G0wYgxDe3RxUmI" target="_blank">aqui</a>)
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Voltou a haver falta de solidariedade europeia, neste caso na resposta à pandemia?
Em momentos de crise, em particular numa crise sem precedentes na Europa, a questão da solidariedade europeia será sempre objeto do escrutínio e criticismo público. Em primeiro lugar, a resiliência de um projeto cooperativo como o europeu, implica que o compreendamos. Em segundo, que não esqueçamos os motivos que presidiram à sua constituição enquanto projeto comum. É importante que o compreendamos para que não se reclame das instituições europeias aquilo que, por via das competências contratualizadas entre estas e os Estados Membros, aquelas não podem proporcionar. A Comissão Europeia, por exemplo, não detém competências exclusivas sobre as políticas de saúde, sendo essa uma competência dos Estado Membros. Contudo, a 22 de março a Comissão Europeia informou o Conselho Europeu de que estavam reunidas as condições para o acionamento de medidas derrogatórias, previstas no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Estes permitem aos Estados Membros efetuarem despesas decorrentes da mitigação das consequências da crise, beneficiando de um abrandamento da disciplina orçamental e fiscal, no âmbito do Pacto de Estabilidade e Crescimento. A Comissão irá ainda avaliar o montante e as condições em que o fundo de recuperação irá ser disponibilizado aos estados membros, sob a forma de subvenções ou empréstimos, a par dos mecanismos monetários que já existem de apoio ao endividamento. Os motivos que estiveram na origem da construção de um projeto comum europeu foram os da criação de uma comunidade de interesses, da estabilidade europeia e do evitar a competição geopolítica entre estados. Esta comunhão de interesses, benefícios e obrigações necessita de ser acordada através da concertação e negociação. Estes não são processos rápidos nem fáceis requerendo tempo, pelo que poderão ser interpretados como um impedimento ou ausência de uma necessária e desejada solidariedade.

A polémica do "repugnante" a envolver o triângulo Portugal-Holanda-Espanha foi mais um exemplo de como os chamados países frugais olham com desconfiança para a Europa do Sul?
Tratou-se de um episódio que em nada favorece a diplomacia europeia, mas que acima de tudo, afeta a imagem e a posição dos responsáveis políticos dos Estados membros. Num contexto de decisão política exige-se um nível de argumentação e negociação de caráter técnico, preciso, sustentado em evidências e não o exercício inútil da suspeição e da culpa. A alegação de que as consequências da crise pandémica sobre a saúde pública, sobre a gestão de serviços e recursos e sobre a sustentabilidade do setor publico e privado resultou da má gestão económico-financeira da última década, num momento em que centenas de pessoas pereciam diariamente, em países como Espanha e Itália, foi uma afirmação absolutamente inapropriada. Essa foi infelizmente a dimensão mais visível da reunião de líderes europeus no final de março. Mas tentemos compreender o contexto, mais do que a forma, sem que a mesma deva ser desvalorizada. As intervenções do primeiro-ministro italiano e do presidente francês antecipavam reforço do sentimento anti-europeu por parte dos partidos e movimentos populistas e o risco do fim do projeto europeu, caso a União Europeia não disponibilizasse ajuda financeira para mitigar os efeitos da crise. O que gerou da parte do primeiro-ministro holandês e do seu ministro das Finanças, uma posição semelhante sobre os efeitos da aprovação de ajuda financeira, sem condições restritivas quanto ao seu emprego, invocando que tal beneficiaria a agenda dos partidos populistas na Holanda. O cerne da divisão residiu em primeiro lugar no modelo de financiamento estrutural e sem condições restritivas, tal como desejado pelos países mais afetados. Em segundo, na possibilidade de suprir custos adicionais através do orçamento da União Europeia, sem a criação de um suporte financeiro adicional, como foi proposto por alguns países do norte da Europa. Em terceiro, confirmar a proposta da Comissão Europa sobre a possibilidade de acionar medidas derrogatórias, no que respeita à disciplina fiscal e orçamental, relativas a despesas decorrentes do apoio ao sector da saúde e no apoio às pequenas e médias empresas, severamente afetadas pelas medidas de confinamento adotadas. Na reunião do Eurogrupo de 8 de maio, os ministros das Finanças acordaram a constituição de um fundo de apoio de 540 biliões de euros, empregue a pedido dos Estados Membros, com base em Planos de Resposta à Pandemia, prevendo-se a sua disponibilização a partir de 1 de junho até dezembro de 2022.

O encerramento das fronteiras, sendo compreensivo, é excecional ou há riscos de haver retrocesso não oficial na liberdade de circulação de pessoas?
Não beneficiamos do distanciamento temporal necessário para confirmarmos esse pressuposto. O princípio da liberdade de circulação de bens e pessoas, é um princípio fundamental do funcionamento do Mercado Único e do espaço único europeu. Na fase subsequente à declaração de pandemia, a União Europeia concertou responsavelmente uma posição no que respeita ao encerramento das fronteiras externas da União. Manteve-se a liberdade de circulação no espaço Schengen, permitindo desse modo a circulação de bens de primeira necessidade, de equipas médicas, de pacientes e de cidadãos repatriados, assim como a distribuição de ajuda imediata de material de proteção individual, equipamentos médicos e produtos farmacêuticos. As medidas de confinamento, restritivas da circulação de pessoas dentro e entre países da União, são da responsabilidade dos governos nacionais. Dentro do espaço europeu a aplicação destas medidas tem sido diferenciada e implementada em fases e ao abrigo de condicionalidades distintas, em função das diferentes declarações de estado de emergência ou de calamidade, emitidas pelos respetivos governos. Enquanto não estiverem reunidas as condições de saúde pública, Bruxelas e os governos nacionais certamente que concertarão posições que conciliem mas necessidades e os direitos de circulação interna.

Há ilações em termos de segurança e defesa para a UE a tirar desta pandemia?
Certamente que sim, para a EU e para os Estados membros. Não nos devemos esquecer que a Política Comum de Segurança e Defesa é uma política intergovernamental e por isso grande parte da responsabilidade nos seus sucessos e insucessos, presentes ou futuros, recai e recairá sobre os estados que a integram. O computo tem sido positivo, conferindo uma visibilidade e um capital reputacional que as matérias de segurança internacional e de defesa, normalmente e injustamente não recebem. As forças militares e de segurança por motivos de organização, de planeamento, treino e capacitação podem de uma forma célere e eficaz responder a necessidades imediatas em situações de crise, mesmo quando estas extrapolem a natureza militar e de segurança interna, que as orienta. No plano da segurança internacional, as missões e operações lideradas pela EU têm apoiado a repatriamento de nacionais, o tratamento de pacientes infetados, a evacuação de doentes, contribuído para a disponibilização de hospitais de campanha, distribuído material de proteção às autoridades civis, de segurança e militares locais, assegurando ainda a gestão de fronteiras e a manutenção da ordem pública, em realidades tão distintas quanto as do Mali, Líbia, Kosovo, Rafah e Geórgia. Presentemente os Estados estão confrontados com despesas adicionais na mitigação da pandemia. O futuro desenvolvimento da defesa europeia poderá estar em risco, caso os Estados europeus não demonstrem vontade política para lhe alocar fundos. A probabilidade de uma contração das economias europeias poderá gerar uma redução dos investimentos em projetos e iniciativa de defesa europeia, suportados pelo Fundo Europeu de Defesa. Aquela situação poderá também afetar as negociações, cujo termo está previsto para o final de 2020, sobre a constituição de um instrumento permanente (European Peace Facility), com base em contribuições anuais dos Estados membros. Este instrumento permitirá o financiamento de ações no domínio da Política Externa e de Segurança Comum com implicações no domínio militar e da defesa europeia. No que respeita aos projetos no quadro da Cooperação Estruturada Permanente, a crise pandémica poderá criar a oportunidade de apoio a projetos significativos e que deem à Europa uma vantagem competitiva na resposta a emergências complexas. Portugal, no primeiro semestre de 2021 assumirá a Presidência do Conselho Europeu. Esta pode oferecer o momento para um contributo construtivo, por exemplo nos domínios da mobilidade militar no apoio às autoridades militares e civis; no fomento de capacidades de duplo uso; no desenvolvimento do comando médico europeu e do centro de treino médico; nos projetos de apoio à projeção de capacidades civis e militares no auxilio a situações de catástrofe e de emergência e finalmente no quadro da proteção no domínio da cibersegurança e ciberdefesa. À luz dos contributos na área da defesa europeia a crise pandémica poderá reclamar melhor cooperação no domínio da defesa, traduzida numa eficaz e útil rentabilização de investimento e de capacidades.

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