"Nunca se pode perder as pessoas de vista, seja em Caxemira, seja na Palestina"

Entrevista a Athar Sultan-Khan, reitor da Escola de Diplomacia de Genebra e que foi chefe de gabinete de António Guterres, quando o atual secretário-geral da ONU liderava o ACNUR. Conversou com o DN em Lisboa, onde deu uma palestra a convite da Delegação do Imamat Ismaili e do Instituto Diplomático.
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Como é que vê este prémio Nobel para o líder etíope Abiy Ahmed, um prémio da Paz para alguém que conseguiu realmente um acordo de paz?

Acho que este prémio Nobel da Paz para o primeiro-ministro etíope é uma prova da diplomacia a dar o seu melhor para resolver conflitos e trazer a paz e a reconciliação, como fez o primeiro-ministro da Etiópia. Esta é uma prova de que a diplomacia pode fazer muito melhor do que a atual situação do mundo que não tira proveito da diplomacia multilateral. Isto dá-nos agora mais uma razão para fazermos muitos mais esforços diplomáticos multilaterais.

Quando a diplomacia bilateral não consegue resolver os problemas, as Nações Unidas tornam-se muito importantes. Como é que vê, após tantos anos a trabalhar para as Nações Unidas, o número de sucessos da ONU a serem muito maiores do que as situações que a organização não foi capaz de resolver?

Penso que as Nações Unidas sempre tentaram resolver conflitos e encontrar resoluções lidando com todas as partes do conflito usando diplomacia multilateral, como pede a Carta das Nações Unidas, sob a direção do secretário-geral e de todo o Conselho de Segurança. A ONU tem sido frequentemente muito, muito bem-sucedida - temos tido acordos de paz, refugiados que têm podido regressar a casa, por exemplo em Moçambique, em Angola, na Namíbia, na África do Sul, no Camboja, no Iémen, etc.. Claro que há muito mais para fazer atualmente porque temos muitos refugiados ainda no exterior, no Paquistão, no Irão e a situação é muito, muito séria no Iraque, na Síria e no Iémen, mas a ONU está muito envolvida nos esforços da diplomacia multilateral para alcançar a paz e a segurança que possibilitem às pessoas regressar a casa com segurança e dignidade.

Qual é a importância da personalidade do secretário-geral em termos do que as Nações Unidas conseguem alcançar? Pergunto-lhe isto porque conhece pessoalmente António Guterres visto que foi e é um seu conselheiro próximo.

Sim, penso que António Guterres tem estado envolvido nas questões da paz e da segurança desde o início da sua carreira. Se olharmos para a situação de Timor Leste vemos que foi uma solução muito boa e Guterres esteve muito em cima da questão. Mas ele também foi muito sensível aos refugiados sudaneses, às pessoas deslocadas impossibilitadas de regressar durante anos e anos porque não havia paz, havia guerras e conflitos a decorrer e Guterres foi muito sensível a interagir com as diferentes partes. Como alto-comissário podia estar em ambos os lados da fronteira do país de asilo com o país de origem e eu vi-o fazer isso de uma forma notável, muito envolvido. Principalmente por causa da sua personalidade trabalhou muito de perto, muito sensível às questões, trabalhou muito com o coração. Resolveu problemas e dificuldades em campos de refugiados, especialmente de mulheres e crianças e outras pessoas abandonadas.

Foi uma surpresa para si a eleição dele, sempre favorito e sendo escolhido na última eleição? Ser português é uma vantagem?

Não, para mim pessoalmente não foi uma surpresa, eu fui talvez uma das primeiras pessoas próximas dele que sempre pensei que ele seria o secretário-geral que se seguiria. Eu via nele o secretário-geral, ele falava e eu ouvia a voz do secretário-geral, depois ele andava pelos países, falava com os líderes mundiais e eu via nele o secretário-geral, mesmo antes de ele próprio o ter visto porque ele estava no ACNUR pelo ACNUR, não tinha outra agenda, era alto-comissário para os refugiados e mais nada, mas eu via naquele homem o futuro secretário-geral. No início eu estava a ser muito idealista, porque era muito claro que iria haver alguém da Europa do Leste, alguém de outro sítio, ou uma mulher... Eu já conhecia bem António Guterres do ACNUR, mas depois os membros da Assembleia Geral decidiram fazer um debate aberto e as pessoas viram Guterres e não houve dúvidas de que era o homem certo para o cargo.

O problema de Caxemira entre o Paquistão e a Índia é um dos mais antigos conflitos no mundo. Vê alguma perspetiva de uma solução?

Durante a minha carreira na ONU, onde comecei com 24 anos, não lidei com assuntos bilaterais, especialmente não com os que envolvem o meu próprio país por uma questão de conflito de interesses, mas falando como cidadão do mundo, falando como membro da sociedade de segurança internacional, penso que é imperativo que haja uma solução para a crise de Caxemira, porque o povo está numa situação muito difícil e isto já dura desde 1948. Não pode continuar assim.

E as Nações Unidas serão essenciais para uma solução?

Sabe que a ONU está sempre pronta. É uma questão das partes do conflito, de elas quererem que as Nações Unidas desempenhem um papel de liderança, porque ao abrigo da Carta das Nações Unidas, e da resolução do Conselho de Segurança, há sempre lugar para a ONU. Mas esta não pode envolver-se por sua própria vontade, as partes em conflito têm de pedir às Nações Unidas que tenham um papel de liderança.

Os líderes da Índia e do Paquistão têm de chegar a acordo antes de pedirem a intervenção das Nações Unidas?

Sim. As partes em conflito têm de concordar, e eu penso que no caso do Paquistão deixou a sua posição bem clara da última vez que o primeiro-ministro foi a Nova Iorque à Assembleia Geral.

Quando olha para outros conflitos com sete décadas, como o israelo-palestiniano, constata que, às vezes, mesmo com todos os esforços das Nações Unidas, são verdadeiramente difíceis de resolver?

Eu penso que todos os conflitos podem ser resolvidos se houver vontade política, porque tem de haver vontade política das partes em conflito, dos países da região envolvidos e, claro, das principais potências mundiais. Se for esse o caso, qualquer conflito pode ser resolvido. Se olharmos para a história das Nações Unidas desde 1945, vemos que houve muitos conflitos que as pessoas pensavam que nunca seriam resolvidos e que o foram. Basta olhar para a própria Europa - nunca ninguém imaginaria que se poderia ir de carro de Lisboa até Varsóvia sem passaporte, sem trocar dinheiro, sem atravessar fronteiras e está a acontecer. Ninguém, no período da Guerra Fria, nas décadas de 1960 e 1970, conseguia imaginar uma coisa destas. Por isso acredito que com uma visão como esta, um dia, o Médio Oriente também terá a possibilidade de viver em harmonia, uma harmonia entre todos os países que estão atualmente em conflito.

É um otimista em relação às questões mundiais?

Sou muito otimista. É a única coisa que posso ser como pessoa envolvida em diplomacia multilateral internacional. Eu digo com convicção que podemos fazer diplomacia multilateral. Eu trabalhei de perto com Israel - foi um dos países com que lidei no âmbito do ACNUR -, trabalhei com os palestinianos e penso que há sempre uma solução para qualquer problema. Claro que a solução é sempre política e, como já disse, a vontade tem de estar presente, mas não se pode dizer que se deixarmos a questão lado nada acontece porque há pessoas lá. Se temos pessoas a viver na Palestina desde 1948 num ambiente confinado, não se pode abandoná-las. É por isso que é importante não esquecer que nunca se pode perder as pessoas de vista, seja em Caxemira, seja na Palestina, sejam refugiados afegãos, somalis, temos sempre de manter o foco nas pessoas. Isso é muito importante e, no meu caso, na minha carreira, eu ando muito no terreno, não estou sentado em Nova Iorque, passei os primeiros anos da minha carreira inteiramente no terreno. Estive em Mogadíscio, em Argel, em Porto Sudão, em muitos lugares. Assim, as pessoas são a razão do meu otimismo, da minha motivação e do meu empenho. Eu vi as pessoas, elas aproximavam-se, seguravam-me na mão e perguntavam-me quando é que voltavam para casa. Não podia voltar para Genebra e dizer que me tinha esquecido delas.

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