Nazismo. O ruidoso silêncio da Igreja será finalmente esclarecido?
O Vaticano quer esclarecer o silêncio do Papa Pio XII, acusado durante as últimas décadas de não ter levantado a voz contra o nazismo durante a II Guerra Mundial (1939-1945). A abertura dos arquivos históricos, já confirmada oficialmente, é há muitos anos aguardada por historiadores e organizações judaicas que querem ver clarificado clarificar o papel da Igreja durante este período trágico do século passado.
"A Igreja não tem medo da História. Pelo contrário", disse o Papa Francisco no dia 04 de março de 2019, quando anunciou a abertura da documentação relativa ao pontificado de Eugenio Pacelli (Papa Pio XII), que se prolongou entre 1939 e 1958.
Recorde-se que, a poucos metros da cidade do Vaticano, no dia 16 de outubro de 1943, soldados nazis capturaram 1.022 judeus, entre os quais 200 crianças e adolescentes, que poucos dias depois foram enviados para o complexo de extermínio de Auschwitz instalado na Polónia. Destes 1.022 judeus capturados perto da cidade do Vaticano sobreviveram 17 pessoas.
A partir da próxima segunda-feira, os historiadores vão ter à disposição 16 milhões de documentos assim como dezenas de milhares de caixas procedentes não só do que foi conhecido como "arquivo secreto", mas também de diferentes instituições do Estado do Vaticano que foram organizados nos últimos 14 anos.
Até ao momento foi autorizada a consulta a 85 investigadores, entre os quais historiadores do Museu do Holocausto (Washington) assim como de Israel, Alemanha, Itália, França, Rússia, Espanha e de vários países da América do Sul.
A investigadora Esther Muscznik considera que a abertura dos arquivos do Vaticano podem ajudar a estudar o silêncio do Papa Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial e que será também importante para vários países.
"De facto, o silêncio a que se remeteu, por vários motivos, a hierarquia e sobretudo o Papa continuam por explicar. Porque, de facto, uma voz como a do Papa teria um impacto muito importante na altura e a não existência dessa voz naquela altura terá tido consequência negativas", disse à Lusa Esther Muscznik fundadora e presidente da Associação Memória e Ensino do Holocausto e ex-vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa.
"Espero que os arquivos nos façam compreender melhor o que se passou naquela época", sublinha acrescentando que é importante para todos os países a abertura dos arquivos.
Apesar das posições e "silêncios" do Vaticano durante a Segunda Guerra Mundial, Esther Muscznik sublinha que "não se pode esquecer" o papel que individualmente ou até coletivamente freiras, padres, escolas e conventos que esconderam e salvaram "crianças judias" correndo o risco de vida. "Isso é um dado extremamente importante", afirmou esta historiadora, autora, entre outras obras, do livro "Portugueses no Holocausto".
A historiadora Irene Flunser Pimentel está a encarar com cautela a abertura dos arquivos. "Estou cautelosa relativamente ao assunto. Parece uma coisa muito boa. Já se chegou a altura, 75 anos depois do fim da II Guerra Mundial, de se abrirem estes arquivos, mas vamos ver como é que vão ser abertos e se vão todos ser abertos", disse à agência Lusa a historiadora, recordando que a Igreja Católica mantém sempre reservas sobre documentos históricos. "Por exemplo", lembra, "os arquivos do Cardeal Cerejeira também foram abertos e com grande publicidade em Portugal, mas depois vai-se a ver que há períodos em que não se pode ver nada, sobretudo os períodos mais recentes".
A historiadora assinala que "todo este período é muito polémico" e que "de uma certa forma, a Igreja Católica tem sempre tentado dizer que perante o que já se sabia sobre o Pio XII, que foi um Papa que até ajudou judeus durante o Holocausto", No entanto, sublinha Irene Pimentel, "isto não é bem assim, antes pelo contrário".
A historiadora com obra publicada sobre o período da II Guerra Mundial recorda que "houve uma altura" em que o Vaticano negociou com o Brasil vistos de entrada para judeus, mas desde que se convertessem ao catolicismo.
Irene Pimentel refere ainda que Pio XII conhecia "muito bem" a Alemanha porque tinha sido núncio apostólico já com Hitler como chanceler e "tinha uma boa relação com a Alemanha nazi". Por outro lado, acrescenta, a seguir à guerra, em 1945 o Vaticano esteve envolvido na linha de fuga de nazis à justiça dos Aliados. "Pode-se alegar que o Vaticano não sabia muito bem o que se estava a passar mas o Vaticano foi talvez, enquanto Estado, aquele que mais depressa soube o que estava acontecer na Polónia sobre o genocídio dos judeus. Por uma razão muito simples: tinha uma organização que lhe permitia ter informações privilegiadas sobre o que estava a acontecer", afirma.
Anteriormente, o Pio XI que antecede o pontificado de Eugenio Pancelli, tinha criticado a Alemanha nazi, "não tanto pelas perseguições aos judeus ou aos comunistas" mas sobretudo pela perseguição aos católicos na Polónia.
"A partir de 1937 houve um medo muito grande que a Alemanha nazi acabasse com as organizações de ação católica e Pio XI manifestou-se contra", recorda a historiadora sublinhando que a partir de 1939 o Papa Pio XII, pelo contrário, foi muito mais cuidadoso ou cauteloso ou mesmo passivo.
O arquivista histórico do Vaticano Luís Miguel Cuña Ramos disse que a parte dos documentos relativos à Congregação para a Doutrina da Fé vai esclarecer o pontificado de Pio XII e que a figura deste para "vai sair muito engrandecida".
"Vamos deixar-nos de ideologias e de preconceitos e vamos à História. Este é o momento para os historiadores tirarem conclusões", acrescentou o responsável. "Naquela altura (Segunda Guerra Mundial) falava-se ou fazia-se, mas ele (Pio XII) decidiu fazer. É muito mais fácil falar do que fazer, mesmo sabendo que estava a arriscar o próprio prestígio", disse ainda o arquivista espanhol.
Alguns livros publicados nos últimos anos, que têm como base testemunhas da época, indicam que o Papa ajudou a salvar quatro a seis mil judeus que conseguiram refugiar-se na América do Sul. A teoria é defendida por Pierre Belt no livro "Pio XII e a II Guerra Mundial nos Arquivos Secretos".
O bispo Sergio Pagano, responsável pelo Arquivo Apostólico Vaticano, disse recentemente que os historiadores têm "agora" o dever de consultar os documentos e, "de forma honesta", compará-los com diferentes fontes. "Nós acreditamos que os documentos 'novos' e os documentos 'antigos' podem trazer aspetos particulares e objetivos de um pontificado que foi crucial", afirmou. "Há numerosos testemunhos sobre a ajuda prestada por simples cristãos, assim como pelas instituições religiosas e bispos para conseguiram salvar essa pobre gente tão cruelmente perseguida", concluiu.