"Não conseguimos tirar todas as pessoas do mar e isso é uma coisa que marca"

A Jugend Rettet recusou assinar um código de conduta criado no ano passado por Itália para regular a atividade das ONG no Mediterrâneo. O seu administrador critica a atual política europeia e as soluções propostas pelos líderes.
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Julian Pahlke, de 26 anos, é o administrador da organização não governamental alemã Jugend Rettet (que significa resgates da juventude), cuja ação já salvou 14 mil vidas e foi matéria para um documentário.

Com o navio da ONG apresado em Itália, Pahlke lamenta a política europeia relativa à migração e à criminalização dos salvamentos marítimos.

O que diz das acusações que o ministro italiano Matteo Salvini faz às ONG como a sua? Contribuem para o tráfico de seres humanos e não respeitam as águas territoriais?

A alegação não é nova mas está tão errada como no primeiro dia. Os traficantes de pessoas não têm quaisquer princípios. São monstros. Torturam pessoas na Líbia mas a situação evoluiu porque há um vazio de poder na Líbia. Não concordamos com o que essas pessoas fazem em nada. Está errado, mas as pessoas põem as suas vidas nas mãos dos traficantes. Quanto às águas territoriais, a Líbia não reclamou a zona contígua [12 milhas marítimas], é onde as ONG operam. Isso são águas internacionais. Salvini não está ao corrente das leis e isso é muito fácil de perceber.

Qual é a vossa posição sobre o direito ao asilo? Todas as pessoas têm direito a vir para a Europa?

Essa questão não faz muito sentido, porque dizer que todas as pessoas vêm para a Europa é retórica. Pensamos que é necessária uma nova lei de migração. Até agora, com o acordo de Dublin, não se pode entrar numa embaixada e pedir asilo humanitário. A UE agora quer criar tendas em solo africano e dar uma oportunidade para as pessoas pedirem asilo aí. Isso não vai funcionar porque antes de mais a legislação tem de ser mudada. Até agora a única forma é entrar na Europa de navio ou de avião e de avião é impossível. As pessoas estão presas lá. É necessário haver formas legais para as pessoas migrarem. Os asilos devem ser concedidos no país de origem, não na Líbia nem na Tunísia. E claro que é preciso dar condições para a estabilidade dos países. Mas não devemos trabalhar com ditadores, como se está a fazer agora.

Qual tem sido a atividade da ONG a partir do momento em que o Iuventa foi apresado?

O Iuventa foi arrestado em agosto do ano passado e o nosso foco tem sido a recuperação do navio, claro. Sempre tivemos outro tipo de trabalho. Por exemplo o trabalho político, ir falar com as crianças e os jovens, dentro e fora das escolas. E, claro, ajudar as outras ONG nas missões de salvamento, ajudar sempre que necessário. Estamos a trabalhar de perto com as outras ONG desde que o Lifeline e o Seefuchs foram apresados. Nenhuma ONG tem gente suficiente.

Como é que as ONG se organizam em rede?

Antes de mais, a maioria é alemã, o que torna as coisas mais fáceis. Temos muito contacto com as outras ONG. Ainda não tinha pensado nisso antes, mas acho que é o mesmo ideal que nos une.

Como está o caso do Iuventa?

Levámos o caso para o tribunal superior em Roma e este decidiu que não iria libertar o navio nem desistir das acusações. Não há mais do que uma suspeita. Não o provaram até hoje nem o irão fazer, mas a legislação antimáfia permite o confisco de bens só porque se suspeita de algum crime. Vamos levar o caso para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em Estrasburgo. Estamos a trabalhar nisso neste momento. No próximo mês vamos entregar o caso. [A Jugend Rettet emitiu entretanto um comunicado a criticar o facto de o Ministério Público italiano ter estendido a investigação a cada um dos membros da tripulação]

Como é que estão de doações, uma vez que não estão em missão?

Sempre recebemos um número muito grande de pequenas doações. Por algum motivo continuam a fazê-lo. Temos recebido apoio da igreja protestante...Temos feito ações de consciencialização e de recolha de fundos. Porque mesmo com o navio apreendido, mantemos custos. Pagamos seguros, etc., não tem sido fácil.

Como é a experiência de estar num navio a resgatar pessoas?

Estive no Iuventa duas vezes em missões de salvamento, durante duas semanas e meia. Da primeira vez foi no final de 2016. Vemos as imagens todas dos jornais e da TV e lemos muito sobre o assunto e falamos com a equipa para nos prepararmos. Mas uma vez lá é completamente diferente. Fui ao leme de um pequena embarcação de salvamento e não se consegue imaginar com o que nos confrontamos. Salvámos 150 pessoas, 150 vidas estavam dependentes das nossas necessidades, um pequeno erro e não uma mas 10 ou 20 pessoas morrem, o que é horrível de pensar. Da segunda vez foi diferente, já sabia o que esperar. Ainda assim foi uma missão muito dura. Estávamos sobrelotados e estivemos 40 horas à espera de ajuda. Foi muito difícil estar preso no navio e ninguém vir em nossa ajuda apesar de termos enviado sinal de socorro. Nem os italianos, nem os malteses, nem o centro de coordenação de salvamento, nem os navios mercantes, nem a Operação Sophia, ninguém respondeu durante esse período. Foi muito intenso e aterrador, sem dúvida.

Esta experiência mudou-o?

Não vou dizer que foi exclusivamente por esta experiência, mas diria que toda a experiência nos faz uma pessoa diferente. Não conseguimos tirar todas as pessoas do mar, vemos pessoas a afogarem-se porque são demasiadas. Isso marca uma pessoa, não há dúvida. Mas não podemos ter o mesmo olhar ao sabermos do contexto e ao vermos como a política é feita e as decisões são tomadas.

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