Na fronteira entre as Coreias, o soldado Lim está pronto a combater. Até a soco e pontapé

Ameaças norte-coreanas trazem de novo a tensão à península dividida desde o fim da Segunda Guerra Mundial. DN republica reportagem de abril de 2015, ainda antes das cimeiras intercoreanas e dos encontros de Kim Jong-un com Donald Trump.
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Parecem estátuas os soldados sul-coreanos que guardam a linha de demarcação em Panmunjom, o ponto da fronteira onde os militares dos dois lados chegam a estar a menos de um metro de distância. Até os óculos de sol, estilo Ray-Ban, servem para ocultar o piscar de olhos, reforçando a sensação de que não são de carne e osso, mais figuras de cera, tão lisa e brilhante é a pele do rosto e das mãos. Estão todos em posição de combate, de punhos cerrados e pernas ligeiramente afastadas. No coldre, uma pistola, a única arma autorizada na zona de segurança conjunta (JSA) onde fica o pavilhão azul que serve para negociações, quando as há, pois a Guerra da Coreia acabou em 1953, mas um tratado de paz entre Pyongyang e Seul continua por assinar há quase sete décadas [o tratado foi finalmente conseguido em 2018, numa cimeira intercoreana].

"Somos a unidade mais bem treinada das Forças Armadas da República da Coreia. Preparados para tudo", diz em tom épico num inglês perfeito o soldado de primeira classe Lim, enquanto explica a um grupo de jornalistas que o lado sul da célebre DMZ, a zona desmilitarizada entre as Coreias, é suposto estar sob controlo das Nações Unidas, mas 95% do pessoal é sul- coreano.

Além do domínio impecável da língua inglesa, os recrutas aqui colocados têm de medir pelo menos 1,77 m, conta-se que para não fazerem fraca figura perante os aliados americanos. E não podem ter família na Coreia do Norte, de modo a evitar algum tipo de chantagem. Além disso, têm de ser voluntários para servir na DMZ, que apesar do nome tranquilizador é considerada a fronteira mais perigosa do mundo, no mínimo aquela onde se concentram mais meios militares. Há um milhão de soldados na Coreia do Norte, 600 mil na do Sul.

Lim foi treinado no taekwondo, a arte marcial coreana que milhões de pessoas aprendem mundo fora. Neste caso, não se trata de praticar por desporto, mas sim como instrumento de guerra. Afinal, os punhos cerrados dos soldados na linha de demarcação correspondem a uma posição do taekwondo , que serve para impor o respeito aos norte-coreanos. Se houver nova invasão através do paralelo 38, como em junho de 1950, os sul-coreanos saberão defender-se, "a soco e pontapé, se for preciso", garante o jovem.

O único norte-coreano visível é o militar fardado de castanho que se encontra no cimo da escadaria do Panmungak, o edifício cinzento e de linhas estalinistas que se ergue do outro lado da fronteira. Entra e sai, volta a entrar e sair, talvez para reportar a alguém lá dentro que há gente a fotografar. De qualquer forma, não é inabitual este tipo de visitas, não só de jornalistas mas também de turistas. A Coreia do Sul promove-as para denunciar a divisão da península e a permanente tensão, também a Coreia do Norte traz de vez em quando delegações [e nos últimos dois anos, marcados por negociações inéditas, não só o presidente Moon Jae-in da Coreia do Sul como o americano Donald Trump visitaram a DMZ].

No passado houve vários incidentes graves aqui na JSA. Um famoso quando em 1984 um visitante soviético fugiu para o Sul, foi de imediato perseguido por soldados norte- coreanos e, apesar de ter conseguido escapar e pedir asilo, durante o tiroteio morreram militares dos dois lados. Um monumento junto ao Palácio da Liberdade, o equivalente sul-coreano do Panmungak mas de estilo modernista, homenageia o soldado morto. Um outro memorial, uma centena de metros para a esquerda, relembra o capitão Bonifas, morto à machadada por soldados norte-coreanos em 1976. Era suposto ser uma simples operação de corte de uma árvore que impedia a visão num dos pontos de observação colocados ao longo da DMZ, uma faixa de quatro quilómetros de largura que corre do mar do Japão (mar Oriental para os coreanos) até ao mar Amarelo, 250 quilómetros ao todo, que separam os 25 milhões de norte-coreanos dos 50 milhões de compatriotas que vivem no Sul.

"Estamos de certeza a ser vigiados por binóculos a partir dos pontos de observação norte-coreanos. Nada de movimentos bruscos", alerta o capitão Egee, um americano ao serviço da ONU, deixando perceber o tom adocicado do inglês falado no Sul dos Estados Unidos. Em teoria, foram as Nações Unidas que enfrentaram na Guerra da Coreia os comunistas norte-coreanos e os chineses, mesmo que o grosso das tropas dos 16 países beligerantes fosse americano. Tal deveu-se a uma votação no Conselho de Segurança que aproveitou a ausência do embaixador soviético em protesto por Taiwan manter o seu assento mesmo depois do triunfo dos comunistas na guerra civil chinesa, um ano antes. Em apoio da Coreia do Sul vieram soldados britânicos, neozelandeses, tailandeses, turcos, etíopes e até luxemburgueses. Aliás, o grão-ducado conta com dois mortos entre os 41 mil da ONU.

"Sou de Nashville, Tennessee", reivindica com orgulho o capitão americano, desde novembro estacionado na Coreia do Sul. Acompanha também os jornalistas neste percurso pela DMZ e recusa comentar a alegada vontade dos sul-coreanos de se verem livres dos aliados americanos, ainda com bases no país dada a ameaça nuclear norte-coreana. "Morreram milhares de americanos na Guerra da Coreia. Em defesa do mundo livre. Devemos respeitá-los", responde Egee.

Mesmo sem binóculos consegue ver-se o mastro de 160 metros onde está fixa uma bandeira gigante da República Popular Democrática da Coreia, o nome oficial da Coreia do Norte, proclamada por Kim Il-sung e hoje governada por um neto, Kim Jong-un, que tem armas nucleares. Também se vislumbram as casas de Kijongdong, a aldeia próxima da fronteira. Na parte sul há também uma aldeia na DMZ, com 205 habitantes, alguns dos quais se podem ver a trabalhar nos arrozais, confinados a zonas onde há certeza de ter havido desminagem. "São descendentes dos habitantes originais. A sua presença é simbólica, mas importante. Por isso, não pagam impostos e os homens estão isentos de serviço militar", explica o soldado Lim.

O regresso a Seul demora menos de uma hora. Afinal, a capital sul-coreana fica a apenas 50 quilómetros do paralelo 38, a linha definida à pressa por um militar americano em agosto de 1945 para esclarecer onde seria a União Soviética a receber a rendição das tropas japonesas e onde seriam os Estados Unidos. A Segunda Guerra Mundial acabava, mas a Guerra Fria já se adivinhava.

"Para nós coreanos, 2015 é uma data cheia de contradições. Por um lado marca os 70 anos da nossa libertação do colonialismo japonês, por outro são também os 70 anos da nossa divisão", nota Cho Tae-Yul, [então] o vice- ministro dos Negócios Estrangeiros. A reunificação é um desejo oficial em ambos os lados, mas pouco realista por estes dias.

(Artigo originalmente publicado a 26 de abril de 2015)

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