Na era da retórica do nós vs. eles, "2017 precisa de heróis dos direitos humanos"

O relatório da Amnistia Internacional faz um balanço negro do ano passado, antevendo ainda mais problemas para o que acaba de começar. Num mundo cada vez mais dividido, lança apelo à resistência das populações

A ideia de que os outros são os culpados dos nossos problemas não é nova, mas em 2016 a retórica do "nós vs. eles" ganhou um destaque ainda maior à medida que esse tipo de discurso foi sendo legitimado pelos líderes políticos à procura de chegar ao poder - ou de se manterem lá a qualquer custo. E 2017 não vai por um melhor caminho no que diz respeito aos direitos humanos, avisa a Amnistia Internacional, alertando para o facto de as crises existentes serem exacerbadas por uma debilitante ausência de liderança no tema. Daí o apelo: "2017 precisa de heróis dos direitos humanos."

O cenário traçado pelo relatório anual da Amnistia Internacional sobre o Estado dos Direitos Humanos no Mundo, que vai ser apresentado hoje, é negro. "O alarmismo divisório tornou-se uma força perigosa nos assuntos mundiais. Quer seja [o presidente norte-americano Donald] Trump, [o primeiro-ministro húngaro Viktor] Orban, [o turco Recep Tayyip] Erdogan ou [o líder filipino Rodrigo] Duterte, mais e mais políticos que se autointitulam antissistema estão a usar uma agenda tóxica que fere, transforma em bodes expiatórios e desumaniza grupos inteiros de pessoas", disse o secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty. "As primeiras vítimas são os refugiados", avisa, mas se nada for feito outros serão apanhados no fogo cruzado.

"São discursos de divisão, de medo, que transformam em armas de arremesso as respostas aos receios legítimos das pessoas em matéria de segurança e prosperidade económica. Os culpados são, segundo os líderes políticos, todos os que são estrangeiros, os refugiados... Há uma retórica do temos de ser "nós contra eles" porque somos nós ou eles", explicou ao DN o diretor executivo da secção portuguesa da organização, Pedro Neto. "Não são os refugiados, não são os imigrantes, não são as pessoas que fogem de realidades de guerra e de condições de pobreza extrema e desesperante que são as culpadas dos nossos problemas", refere.

Já Shetty, no comunicado de imprensa que acompanha o relatório, fala de uma "política de demonização" que passa a ideia de que algumas pessoas são "menos humanas" do que outras, avisando que esse "discurso cínico de culpa, ódio e medo do "nós vs. eles" ganhou um destaque global a um nível que não era visto desde os anos 1930". Algo que ameaça tornar-se ainda mais grave este ano: "A realidade é que começamos 2017 num mundo profundamente instável cheio de trepidação e incerteza em relação ao futuro."

No âmbito político, a organização destaca a campanha negativa de Trump nos EUA, com "declarações profundamente fraturantes, marcadas pela misoginia e xenofobia". Em relação ao novo presidente norte-americano, Pedro Neto opta por falar contudo em esperança por causa da reação dos cidadãos. "Logo após as primeiras ordens executivas [a travar a entrada de imigrantes e refugiados de sete países], as pessoas responderam com ação. Vimos muita gente concentrada em aeroportos, a oferecer apoio jurídico, apoio logístico, as pessoas a irem para a rua, a manifestarem-se pacificamente contra este tipo de ordens executivas, vimos também o equilíbrio de poderes dos EUA a moderar essas más ordens executivas", referiu.

"Na história da humanidade, quando um governo ou líder político exortou ao ódio e ao medo, foram sempre pessoas anónimas a dar resposta. Nesta altura o que precisamos é desses heróis anónimos, pessoas comuns que acordem, que passem à ação, que façam um trabalho de ativismo dos direitos humanos e que digam basta!", lembrou o responsável português. É preciso que as pessoas que já lutam pelos direitos humanos tenham uma voz ainda maior e mais vozes para falar com elas. "Porque é graças a esse grito e a esse discurso em uníssono que seremos ouvidos", indicou Pedro Neto.

"Todas as regiões do mundo viram provas de que onde as estruturas formais de poder são usadas para reprimir, as pessoas encontram formas de se levantar e serem ouvidas", lê-se na entrada do relatório, assinada também por Shetty. "Ninguém pode assumir a responsabilidade pelo mundo todo, mas toda a gente pode mudar o seu próprio mundo", acrescentou, lembrando que "os instintos das pessoas para liberdade e justiça não desaparecem simplesmente".

No relatório que faz o balanço dos direitos humanos em 159 países - onde 36 violaram as leis internacionais ao enviar refugiados de volta a países onde os seus diretos estão em risco - alerta-se também como estados "que antes surgiam como campeões dos direitos humanos no exterior estão agora demasiado preocupados a cortar os direitos humanos em casa para obrigar outros a prestar contas". A consequência de se continuar nesse caminho é arriscarmos ter "um efeito dominó de líderes encorajados a derrubar as proteções estabelecidas para os direitos humanos", alertou Shetty.

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