Marrocos e Portugal partilham um passado comum desde a Antiguidade
Conversa com arquiteto português Frederico Mendes Paula, criador do blog www.historiasdeportugalemarrocos.com e autor dos livros Portugal em Marrocos, Olhar sobre um património comum e Histórias de Portugal em Marrocos.
Marrocos e Portugal partilham um passado comum desde a antiguidade, mas com influências mútuas evidentes ao longo dos mais de 500 anos em que Portugal esteve integrado no Al-Andaluz, salientou o arquiteto português Frederico Mendes Paula.
As provas desse período em Portugal são numerosas, nos testemunhos construídos, na disposição das estruturas urbanas e nas influências linguísticas, com milhares de palavras de origem árabe na língua portuguesa, na toponímia de diferentes lugares, na arquitetura, nas ciências, e mesmo em certos aspetos da vida como a gastronomia, a poesia, a literatura ou a música, indicou Mendes Paula numa entrevista à MAP (Agência Marroquina de Imprensa).
As influências portuguesas em Marrocos são menos evidentes e igualmente menos estudadas, sublinhou o arquiteto, observando que um tema que merece ser mencionado e que foi relegado para segundo plano é a contribuição dos renegados portugueses para a sociedade marroquina.
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"Nós não nos podemos esquecer que a guerra do corso fez um número considerável de prisioneiros e que só na batalha de Alcácer Quibir milhares de portugueses foram feitos prisioneiros, a maior parte dos quais se converteu ao islão e integrou-se na sociedade marroquina, participando nas obras do Estado, como fortalezas ou pontes, e ocupando mesmo postos importantes na administração pública e nas forças armadas", explicou Mendes Paula.
O seu interesse por esta história comum remonta a 1976, quando, segundo conta, visitou Marrocos pela primeira vez, tendo essa visita acordado nele "um fascínio que me acompanha desde então. É evidente que neste sentimento há uma identificação com um passado comum, ressuscitado aquando das numerosas visitas a Marrocos, e o facto de a minha mulher ser marroquina abriu-me a porta do verdadeiro Marrocos".
Este interesse concretiza-se em termos práticos com a criação do seu blogue "Histórias de Portugal em Marrocos" (www.historiasdeportugalemarrocos.com), e a publicação de dois livros Portugal em Marrocos, Olhar sobre um património comum (editado em 2016 em francês e em português) e Histórias de Portugal em Marrocos (editado em versão portuguesa em 2019).
A paixão por esta história comum incitou-o a realizar várias atividades sobre o património de origem portuguesa em diferentes cidades marroquinas, envolvendo a embaixada de Portugal em Marrocos, o Ministério da Cultura marroquino, a região de Marraquexe-Safim, a Câmara Municipal de Lagos, onde trabalha como arquiteto no domínio da reabilitação do património, a Associação Portuguesa de Municípios, da qual é secretário-geral e agrupa uma centena de municípios portugueses, assim como os de Alcácer-Quibir e El Jadida, com os quais Lagos tem acordos de geminação e de cooperação, e a delegação do Turismo de Marrocos em Portugal.
Para ele, o património de origem portuguesa em Marrocos é bastante diversificado e não se limita aos seus aspetos visíveis, ou seja, ele compreende não só os testemunhos edificados, mas também um património imaterial que se manifesta nos acontecimentos passados e nas influências mútuas, certamente pouco estudadas ainda, como as influências linguísticas ou o papel dos renegados portugueses na sociedade marroquina.
No quadro do património edificado, acrescenta, há aspetos que não são evidentes, como as marcas de um urbanismo colonial português emergente em várias cidades marroquinas, com diferentes incidências, menos evidentes em Tânger e Safim, e com uma expressão considerável em Arzila e Azamor.
Muitos destes princípios urbanísticos sofreriam ajustes depois da partida dos portugueses, para readaptar as cidades ao modo de vida marroquino, sobretudo anulando várias vias ou interrompendo outras para criar impasses.
Um outro aspeto desaparecido atualmente, mas que deixou cicatrizes em algumas cidades era, segundo ele, a estruturação dos terrenos envolventes de antigas praças-fortes portuguesas com elementos construídos precários combinados com procedimentos de rotina rígidos, para a sua utilização diurna com vista à realização de uma agricultura de subsistência, à apanha de lenha para aquecimento, à criação de gado e ao atenuar do sentimento de encarceramento que a vida nas praças suscitava devido a um sistema de muralhas de pedra, paliçadas em madeira e torres de vigia.
O património edificado de origem portuguesa em Marrocos reflete principalmente as transformações da arquitetura militar num período revolucionário, o período de transição da neurobalística à pirobalística, ou seja, a transição da utilização de armas de propulsão mecânica para a utilização da pólvora, e Marrocos foi um verdadeiro "laboratório" de experimentação dos novos conceitos da Renascença.
As intervenções portuguesas nas cidades marroquinas tiveram lugar em três períodos diferentes. No século XV, com um caráter medieval tardio, elas assentam em intervenções primitivas em Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger, principalmente para reparar os danos causados pelas violentas conquistas destas cidades e para criar condições para a instalação das guarnições portuguesas. A primeira metade do século XVI é o período de transição, no decurso do qual as edificações militares se começam a transformar para se adaptarem à utilização das armas de fogo.
A partir de meados do século XVI, as intervenções tornaram-se verdadeiros exercícios de geometria, os bastiões são concebidos de forma pentagonal segundo as trajetórias necessárias aos projéteis, as muralhas quebram para dentro para abrir ângulos de tiro e criam-se canhoneiras laterais para o tiro rasante protegidas por orelhões, situação que resolve o problema do tiro de proximidade e dos ângulos mortos.
Além destas inovações tecnológicas, os portugueses tiveram de introduzir elementos singulares nas cidades conquistadas para permitir uma gestão racional e assegurar o controlo das frentes de mar, assegurando-se que as operações de carregamento e descarregamento podiam ser efetuadas com toda a segurança, pois as praças-fortes eram verdadeiras ilhas isoladas dependentes dos aprovisionamentos marítimos.
No que respeita às ações levadas a cabo pelas autoridades portuguesas para a conservação e manutenção deste património civilizacional, o arquiteto fez questão de sublinhar que os organismos do Estado, nomeadamente o Ministério da Cultura, intervêm direta ou normativamente nos bens sob a sua tutela, ou seja, no património classificado, mas são os municípios que assumem normalmente a responsabilidade do dever de salvaguarda, de reabilitação e de promoção do património em geral.
Cada vez mais, prossegue Mendes Paula, é aceite que a intervenção no património não é uma ação subsidiária, mas um investimento com retorno, sobretudo indireto, pelos benefícios que traz para o desenvolvimento local. "Neste sentido, as políticas de valorização cultural e patrimonial são indissociáveis das políticas de desenvolvimento e as questões de reabilitação devem estar estreitamente ligadas à própria gestão, numa perspetiva de durabilidade."
Na mesma ordem de ideias, tem sido desenvolvido nos últimos anos em Marrocos um esforço notável para recuperar o património de origem portuguesa, implicando em certos casos as autoridades do país, "o que nos deve deixar muito orgulhosos e motivados para que a cooperação entre os dois países seja cada vez mais eficaz".
Os desafios são grandes, os processos são complexos e dispendiosos e o trabalho de reabilitação, valorização, gestão e promoção do património prossegue e continua inesgotável, concluiu o arquiteto.
Especial DN/MAP