Ir para Boston e trocar o bichinho de África pelo sonho americano
A conversa com João Caixinha foi marcada para domingo à tarde, no Consulado de Portugal em Boston. A representação diplomática ocupa várias salas no terceiro piso de um prédio da St. James Avenue, não muito longe do Jardim Público. Com 46 anos, João (foi como combinámos o tratamento, até porque temos só quatro meses de diferença) é desde junho coordenador do Ensino de Português nos Estados Unidos, tarefa de peso dada a dimensão da comunidade luso-americana. "É um grande desafio. Mas na realidade, ainda antes de ser nomeado, já assumia a função há algum tempo", explica.
O gabinete de João (quantas vezes terá já brincado na América com o seu apelido se traduzir por little box?) tem a inevitável secretária com o computador e a extensão telefónica. Sobre a mesa, uma bandeirinha de Portugal. E nas paredes um cartaz do Turismo de Portugal com imagens de azulejos azuis e um mapa dos Estados Unidos. Vive em Boston desde janeiro de 2009, espera ficar ainda muitos mais anos na América e até admite, se um dia não for reconduzido nas funções, voltar a tentar a aventura nos Estados Unidos como professor, afinal de contas a sua profissão. "Também, dada a minha alma de viajante, não afasto a hipótese de depois de uma vida na América experimentar outro país", acrescenta o português nascido em Moçambique.
Para perceber melhor a tal "alma de viajante" vale a pena olhar um pouco para o percurso de vida de João, de seu nome completo João Carlos Nunes Caixinha. "Nasci em Nampula, Moçambique, mas tive de sair de lá em 1974, com apenas 3 anos. Vim na ponte aérea com a minha mãe e a minha irmã , dois anos mais velha. O meu pai ficou para trás, para tentar salvar alguma coisa. Era dono de uma empresa de construção civil que fazia tubagens e canalizações para escolas e hospitais. Viemos com uma mão à frente e outra atrás. Mas tivemos mais sorte do que muitos. O meu pai tinha algum dinheiro guardado em Portugal e pouco a pouco conseguiu refazer a vida. Também tivemos a sorte de ficar na casa de uma tia em Lisboa até podermos ir para uma casa em Sintra", conta João. O pai, João Carlos, de Donas, perto do Fundão, e a mãe, Isaura Maria, de Tomar, tinham-se conhecido em Moçambique através de um amigo que era cunhado dela e lá casaram na colónia portuguesa no Índico, que se tornaria independente em junho de 1975.
Por ser domingo, o consulado está vazio e a conversa decorre sem interrupções. João admite serem escassas ou nenhumas as memórias africanas, mas do que ouviu falar na família a Guerra Colonial não se fazia sentir em Nampula. Mesmo sem recordações, o fascínio por África sentiu-o muito cedo. "Uma espécie de bichinho", diz. E por isso, depois de fazer a licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas na Universidade Nova de Lisboa, e após dar aulas aqui e acolá em busca da colocação definitiva, um anúncio que viu quando era professor em Casal de Cambra levou-o a uma experiência como cooperante no Zimbabwe. "Fui não para Harare mas para Bulawayo, a segunda cidade. Dar formação a futuros professores de Português. Ao princípio achei tudo uma maravilha, mas era uma vida muito difícil. Tinha de ir a pé para a escola. Fiz algumas amizades, com gente local e com portugueses, como o senhor Tavares, que era dono de um restaurante.Tinha 27 anos e acabei por regressar a Portugal, mas por pouco tempo", conta João.
Tinha gostado mesmo de África e voltou a candidatar-se ao Zimbabwe, agora sendo colocado em Harare. Foi um período ainda mais complicado, com o presidente Robert Mugabe a lançar os antigos combatentes anticoloniais contra os fazendeiros brancos. Havia grande inflação e faltava quase tudo, a começar pela gasolina. "Um dia fomos de carro ao campo ver se conseguíamos comprar gasolina sem ter de estar horas nas filas e um grupo de antigos combatentes cercou-nos. Foi um susto. A embaixada portuguesa decidiu então retirar os cooperantes e eu voltei de novo a Portugal", acrescenta.
Uma experiência de professor em 2001 em Andorra, onde eram muitos os filhos de portugueses, não o convenceu, afinal era Europa e nem sequer longe de Portugal. Surgiu então nova oportunidade em África, agora já ao serviço do Ministério da Educação e não do dos Negócios Estrangeiros. "Fui para a Cidade do Cabo. Dava aulas no básico e no secundário e ainda cursos livres na universidade. Tirando que fui assaltado assim que saí do aeroporto no primeiro dia, e fiquei sem carteira e passaporte, nunca mais tive problemas. A Cidade do Cabo é bem mais segura do que Joanesburgo, onde tinha de ir às vezes. Foi uma experiência fantástica. Ainda havia muito apartheid escondido, mas estive em escolas com crianças brancas e negras. Foram anos memoráveis", conta João. Desses tempos em África, quase dez anos contando Zimbabwe e África do Sul, guardou "o carinho das pessoas, o afeto do povo". Chegou a ir a Moçambique, mas nunca a essa Nampula onde nasceu. "Conheci Mia Couto e num livro assinado que me deu chama-me de "mano macua". Não sei como soube que eu era do Norte de Moçambique."
Novo regresso a Lisboa, agora até já como professor efetivo numa escola em Sintra apesar de não ter horário. Soube-lhe bem o contacto renovado com a cultura, com o mundo moderno, pois em África vivia-se a outro ritmo e noutro mundo. Foi convidado para trabalhar no gabinete de relações internacionais do Ministério da Educação, onde tratava dos Estados Unidos, do Canadá, da Austrália e de alguns outros países. Serviu para lhe dar experiência administrativa, "à-vontade a mexer com papelada", relembra. E então surge novo desafio lá fora: ser consultor do Departamento de Educação do Massachusetts. Foi selecionado.
"Cheguei a Boston em janeiro de 2009. Estava muita neve e um frio desgraçado. Nunca imaginei que quase uma década depois ainda cá estaria e com muita vontade de continuar. Com os americanos o contacto é cordial, mas custa fazer amizades, ir à casa de alguém. Já com a comunidade portuguesa é tudo uma generosidade permanente. Gosto de ir às festas, às romarias, aos restaurantes típicos. E fico sempre muito feliz quando percebo tanto amor a Portugal", conta João. De consultor ao serviço do governo do Massachusetts, com a missão de trabalhar com as escolas públicas do estado onde se ensina português, a adjunto da Coordenação do Ensino de Português nos Estados Unidos foi um salto. Ao serviço do Instituto Camões passou em 2010 a integrar o consulado em Boston, cidade que o encanta mas de que se queixa de ser "muito cara, porque aqui é terra do old money". Além das funções de coordenação do ensino de português, que o levam a escolas luso-americanas a toda a hora, envolveu-se também na organização do Boston Portuguese Festival, uma iniciativa que começou com a cônsul -geral Manuela Bairos e tem sido apoiada pelos sucessivos cônsules, incluindo o atual, José Caroço Foi Liliana de Sousa, portuguesa de Olhão, que desafiou João a diversificar mais as atividades culturais da comunidade, juntar aos ranchos e às filarmónicas também os escritores. Neste ano João Tordo esteve em Boston para uma conferência na UMass e depois foi a mais sete universidades americanas falar sobre a literatura portuguesa. "Também já cá tivemos a Alice Vieira, o Gonçalo M. Tavares, o José Luís Peixoto, o José Eduardo Agualusa e tantos outros", sublinha João.
América, pois, por agora e no futuro também, se possível. E se João confessa que gostava muito de Barack Obama como presidente e que lhe desagrada a atitude antiemigrantes de Donald Trump, também diz que não sente verdadeira mudança no país, pelo menos não em Boston, bastião dos democratas, onde o presidente republicano não é figura muito querida.