O "professor Marcelo da Tunísia" é o favorito a ganhar as presidenciais
Foi professor universitário de Direito Constitucional, comentou a atualidade política na televisão e fez uma campanha low-cost, porta a porta. A descrição podia ser a do Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, mas é igualmente válida (e as semelhanças ficam por aí) para Kaïs Saïed, o candidato independente que ganhou a primeira volta das presidenciais da Tunísia. É o favorito à vitória na segunda volta, frente ao magnata dos media, Nabil Karoui, que está preso e é acusado de evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
"Não fiz promessas tradicionais ou apresentei um programa tradicional, mas novas ideias que podem ser cumpridas", disse Saïed após a vitória surpresa de dia 15. O candidato de 61 anos comparou o resultado a "uma nova revolução", indicando estar preparado para trabalhar com todos para construir "uma nova Tunísia". Ainda não há data para a segunda volta: pode ser a 6 de outubro (coincidindo com as legislativas) ou a 13, dependendo dos recursos da primeira volta.
Apesar de uns considerarem que representa o regresso aos valores da Primavera Árabe, outros lembram que enquanto académico não fez a mínima crítica ao regime de Zine El Abidine Ben Ali - que na quinta-feira morreu no exílio na Arábia Saudita, para onde tinha fugido após 24 anos no poder.
Foi depois da revolução de 2011 que Saïed passou a ser chamado para comentar a atualidade política na televisão, nomeadamente os desafios da nova Assembleia Constituinte, ganhando a alcunha de Robocop, devido ao tom metálico da sua voz e da aparente falta de emoção que transmitia. Ao contrário dos outros 25 candidatos na primeira volta, que falam em árabe tunisino, exprime-se em árabe clássico. Nos últimos anos, as sondagens davam o seu nome como uma das três figuras mais populares na Tunísia.
"Em termos de currículo e do que fez até agora, realmente parece o Presidente Marcelo. Mas a comparação fica-se por aí", disse ao DN o tunisino Abdeljelil Larbi, professor universitário de Árabe, há 17 anos em Portugal. "Parece uma pessoa de boa-fé, justa e ideal. Mas ninguém sabe qual é o programa dele", lamenta-se. Já o empresário Aymen Ladhibi, há 11 anos deste lado do Mediterrâneo, lembrou que "a promessa dele foi que não iria fazer promessas", indicando que as pessoas estão entusiasmadas, "como se tivesse havido uma segunda revolução", não porque ele ganhou, mas porque todos os outros perderam. "E ninguém sabe o que pode vir aí."
Sem cartazes, comícios ou grande presença nos media tradicionais, a campanha de Saïed foi financiada com dinheiro próprio (recusou até o apoio do Estado que todos os candidatos recebem) e feita porta a porta (onde podia falar diretamente com o eleitor e personalizar a mensagem) e no Facebook. Segundo as sondagens, conseguiu 37% dos votos dos jovens entre os 18 e os 25 anos. Os apoiantes dizem que a campanha ficou pelo preço de um café e um maço de cigarros, alegando que a austeridade que o rodeia é prova da sua integridade.
Pelo contrário, o seu adversário na segunda volta, também antissistema, não só é dono do canal de televisão Nessma, como tem uma grande equipa a trabalhar para ele. Preso desde 23 de agosto, Karoui, de 56 anos, nega todas as acusações e fala de uma instrumentalização da justiça. No terreno, foi substituído pela mulher, Salwa Smaoui (já trabalhou para a Microsoft).
"Fiquei em choque por ver alguém na prisão por lavagem de dinheiro e evasão fiscal chegar à segunda volta, mas o seu canal de televisão, a associação que criou há três anos após a morte do filho [num acidente de carro, aos 21 anos] e todo o dinheiro que tem distribuído pelos pobres e nas áreas rurais teve um efeito positivo nos seus eleitores", contou a empresária Besma Kraiem, há dez anos em Portugal. Sobre Saïed, deixou claro: "Ele não era o meu candidato", mas "quase de certeza" que vai ganhar. Os outros dois tunisinos ouvidos pelo DN têm mais certezas. "Mesmo os que não gostam dele preferem-no a Karoui. Se fosse outro adversário qualquer, não teria hipótese", defendeu Ladhibi.
Do ponto de vista social, Saïed é ultraconservador: é a favor da pena de morte e contra a homossexualidade. Além disso, num país que é visto como pioneiro no mundo árabe no que diz respeito aos direitos das mulheres, é crítico do direito de elas herdarem tanto como os homens, uma medida que o falecido presidente Béji Caïd Essebsi aprovou mas que ficou presa no limbo do debate parlamentar.
Isso valeu-lhe o apoio dos islamitas, apesar de existirem dúvidas sobre se defende ou não uma Constituição baseada na lei islâmica - numa entrevista disse que "não mencionar a sharia permitia evitar os efeitos negativos e retrógrados", defendendo citar o artigo 1 da Constituição de 1959, que diz que a religião do país é o islão. A sua mulher, uma juíza, não usa véu. O partido islamita moderado Ennahda anunciou na quinta-feira o seu apoio porque considera que ele está "mais próximo do espírito da revolução" e tem as "mãos limpas". Vários ex-candidatos já saíram também em seu apoio, incluindo o ex-presidente interino Moncef Marzouki.
Mas o candidato independente atrai também o voto da esquerda, ao atacar a elite política que acusa de tentar "vender uma ilusão". Uma elite que saltou para a ribalta após a Primavera Árabe, mas que não conseguiu solucionar os problemas económicos que desencadearam a revolução. "Os tunisinos enviaram uma mensagem clara de que estão fartos dos atuais políticos e partidos", disse Besma, com Ladhibi a considerar que o voto foi "mais de revolta do que de apoio a alguém". Larbi resume: "Foi a derrota total da classe política."
Entre as ideias de Saïed está a reforma da Constituição (apesar de ter sido um dos peritos que ajudou a rever a de 2014) e uma mudança radical nas instituições, com mais descentralização do poder. Neste ponto, é contra um Parlamento eleito diretamente, defendendo antes uma "democracia de indivíduos". A ideia é os tunisinos elegerem conselhos locais, que por sua vez escolhem os representantes regionais que elegem finalmente os nacionais. "O poder deve pertencer diretamente às pessoas", defende.
Mas Saïed não tem hipóteses de aprovar a sua ideia, visto que precisa de uma maioria de dois terços no Parlamento e não tem partido para concorrer às eleições legislativas de 6 de outubro. Na Tunísia, o presidente tem poderes limitados, controlando a política de Defesa e de Relações Externas, cabendo ao primeiro-ministro eleito pelo Parlamento gerir as outras pastas.
Isso não deixa os tunisinos que vivem em Portugal mais descansados. "Ele não vai ter poderes para implementar todas as ideias e planos, mas estou preocupada com um presidente focado nos problemas errados na próxima fase de desenvolvimento do nosso país", indicou Besma. "Só espero que não percamos cinco anos a fazer experiências", acrescentou.
Já Ladhibi lembra que ele terá poder de propor projetos ao Parlamento e haverá partidos que o podem apoiar, lembrando que isso pode ser arriscado num país que não está ainda onde devia estar após a revolução. Larbi mostra-se mais positivo, dizendo que em pelo menos uma entrevista que já leu de Saïed após a vitória na primeira volta ele lhe pareceu ter recuado em algumas propostas. "Estou otimista pelo futuro do país", disse ao DN.