Modi: o filho do vendedor de chá que não fala com a mulher desde 1987
Aos 68 anos, Narendra Modi acaba de ser reeleito para um segundo mandato como primeiro-ministro da Índia. O seu BJP foi o grande vencedor das eleições legislativas, infligindo ao partido do Congresso de Rahul Gandhi uma derrota ainda mais pesada do que a de 2014, quando os nacionalistas hindus regressaram ao poder após três décadas na oposição.
Uma ascensão meteórica para o filho de um vendedor de chá que em criança ajudava o pai na banca que este tinha na estação de comboios de Vadnagar, antes de ter a sua própria banca na rodoviária, com um dos cinco irmãos.
Foi ainda adolescente que este estudante mediano começou a assistir a encontros da Rashtriya Swayamsevak Sangh, a maior organização de voluntários do mundo conhecida pela ideologia nacionalista hindu num país cujo fundador, Jawaharlal Nehru (bisavô do atual rival de Modi nestas eleições, Rahul Gandhi), impôs logo desde a independência em 1947 a sua visão de uma sociedade secular, onde havia lugar para todos, inclusive uma forte minoria muçulmana (hoje cerca de 200 milhões).
Durante décadas, os nacionalistas hindus e o seu partido, o BJP luta para se conseguir impor na política indiana. Mas tudo começa a mudar nos anos 90 graças a uma campanha nacional para demolir uma mesquita do século XVI e cobtruir um templo hindu no local. O resultado foi a destruição da mesquita por uma multidão de 150 mil ativistas em fúria, gerando tumultos por toda a Índia que resultaram na morte de mais de duas mil pessoas.
Num partido cujo apoio vinha sobretudo da classe alta hindu, a figura de Modi foi essencial para apelar ao povo. Sobretudo a imagem de filho do vendedor de chá que subiu a pulso no partido.
Dono de um carisma inegável, foi primeiro eleito ministro-chefe do estado do Gujarate, onde os excelentes resultados económicos lhe deram fama nacional. À frente do estado entre 2001 e 2014, nesse ano venceu de forma inequívoca as eleições, levando o BJP ao poder com maioria absoluta.
Suspeito durante anos de ter ignorado a violência antimuçulmanos durante os motins religiosos regionais que causaram mil mortos em 200, Modi depressa conseguiu impor ao mundo a sua imagem de líder moderno que não hesita em tirar selfies, usar o Twitter ou participar em aulas de ioga ao ar livre.
Depois de ter feito uma campanha centrada na economia em 2014, desta vez Modi apostou na segurança, jogando com a ameaça do vizinho Paquistão. Mas a economia não deixa de ser um desafio - depois de o crescimento ter caído para os 6,6% no último trimestre de 2018 e de o país estar confrontado a uma crise liquidez muito devido ao facto de Modi ter abolido as notas de 500 e mil rupias com o argumento de lutar contra a corrupção.
A vida pessoal de Modi é também ela uma verdadeira novela. Aos 13 anos ficou noivo de Jashodaben. Aos 18 as famílias dos dois arranjaram o casamento. Ela tinha 17 e estávamos em 1968. Mas a união pouco durou. Passados três anos - mas pouco mais de três meses de convívio, segundo o site India TV News -, Modi saía de casa à procura da sua vocação religiosa. Foi a política que se lhe atravessou no caminho. Não voltou a casar-se, mas só em 2014, quando preencheu os papéis para a candidatura oficial a primeiro-ministro, é que o então ministro-chefe do Gujarate trocou o risco que costumava pôr no espaço para o estado civil pela palavra "casado".
A revelação pouco alterou a vida do homem que garantiu a vitória aos nacionalistas hindus do BJP. Mas veio revolucionar a vida de Jashodaben.
Deixada na aldeia de Unjha, no norte do estado do Gujarate, Jashodaben só voltaria a ver o marido uma vez depois de este sair de casa. E a última vez que os dois trocaram umas palavras foi em 1987. Professora na aldeia, a mulher de Modi ia acompanhando o seu percurso, primeiro na Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), organização nacionalista hindu à qual Modi se juntou, tornando-se um pracharak - trabalhadores aos quais era recomendado não terem laços familiares.
"Ele era muito jovem. A família garante que os dois nunca coabitaram", afirmou ao Washington Post Nilanjan Mukhopadhyay, autor de Narendra Modi: o Homem, os Tempos. E acrescentou: "[Modi] juntou-se ao RSS sem dizer a ninguém que era casado. Caso contrário, não podia ser pracharak. Estes tinham de ser solteiros. Teriam feito perguntas."
Depois da saída do marido de casa, Jashodaben acabou os estudos com apoio dos pais e dos irmãos e passou a dar aulas até se reformar, tendo vivido a maior parte do tempo numa casa com uma única divisão e sem casa de banho interior. Em 2015, um ano depois da eleição do marido, surgiram notícias de que vivia em casa do irmão mais velho, Ashok, na mesma aldeia e sobrevivia com uma pensão de 14 mil rupias - cerca de 200 euros.
Mas não se pense que as dificuldades que passou deixaram Jashodaben amarga com o marido. Continuava convencida de que a saída deste de casa faz parte do seu destino. Segundo a irmã de Narendra Modi explicou ao Times of India, a cunhada não só "nunca falou mal" do marido que a abandonou, como terá mesmo "rezado para que ele se tornasse primeiro-ministro".
Apesar de continuar a ter uma fotografia do marido dentro do livro de orações, Jashodaben não escondeu a irritação que lhe causaram as mudanças na sua vida provocadas pela chegada deste à chefia do governo, em 2014. A começar pelos seguranças que passaram a acompanhá-la - de acordo com as indicações do protocolo para a primeira-dama. Ao todo serão uma dezena, divididos em dois turnos, que seguem a professora reformada para todo o lado em carros do governo. Isto enquanto Jashodaben continua a usar os transportes públicos. "Eles viajam em carros com ar condicionado, enquanto a minha irmã apanha riquexós ou transportes públicos. Que justiça é esta?", afirmou então Ashok ao Washington Post. A própria Jashodaben explicou à Reuters em 2015: "Estou rodeada por cinco guarda-costas o tempo todo. Muitas vezes os meus familiares e eu temos de cozinhar para eles, a minha cunhada tem de lhes fazer as camas. É um pouco irritante."
Tão irritante que Jashodaben decidiu ativar os seus direitos e pedir dados, ao abrigo da lei indiana de liberdade de informação, sobre os seguranças encarregados da sua proteção. Segundo fontes próximas da primeira-dama indiana, esta terá medo de que os guarda-costas a matem. E costuma recordar o que aconteceu a Indira Gandhi, a primeira ministra indiana assassinada em 1984 pelos guarda-costas sikhs.
Com uma história semelhante à de muitas indianas, a mulher de Modi não esconde contudo a importância que o marido continua a ter na sua vida. Apesar de estar distante dela há mais de quatro décadas. E depois da chegada de Modi ao poder afirmou em entrevista à India TV News: "É um momento muito feliz para mim que ele tenha sido eleito primeiro-ministro. Ainda não me chegou nenhum convite mas, se chegar, irei. Porque não. Se ele ligar, eu vou. Afinal seria o meu marido a ligar, não uma pessoa qualquer."
Com nova vitória de Modi nas eleições indianas, Jashodaben deverá estar de novo ao pé do telefone à espera da tão aguardada chamada.