Eugénia Quaresma: "Era preciso levar o conceito de liderança servidora a todos os líderes de S. Tomé"

Nasceu em Portugal, há 43 anos, cinco dias após a independência de São Tomé e Príncipe. Cristã, catequista, admiradora de Nelson Mandela e membro da Academia de Líderes Ubuntu, Eugénia Quaresma é a diretora da Obra Católica das Migrações da Conferência Episcopal Portuguesa.
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Promovida pela Obra Católica das Migrações da Conferência Episcopal Portuguesa, dirigida por Eugénia Quaresma, decorre entre este domingo e o próximo a Semana Nacional das Migrações. O tema das migrações, constantemente nas notícias, nem sempre pelas melhores razões, foi um dos assuntos abordados nesta entrevista ao DN.

Nascida em Lisboa há 43 anos, cinco dias após a independência de São Tomé e Príncipe, terra natal dos pais, Eugénia cresceu e viveu na Amora. Na Margem Sul. Visitou as ilhas por onde passa a linha que divide os hemisférios em norte e sul quatro vezes. Adora as paisagens e as pessoas, mas diz que falta ainda mudar muita coisa para o país se desenvolver.

Cristã, católica, é catequista há 25 anos e membro da Academia de Líderes Ubuntu, um projeto inspirado no conceito de liderança servidora em que um depende do todos para poder funcionar. E em nomes como os de Nelson Mandela, Mahatma Gandhi, Martin Luther King ou Aristides Sousa Mendes.

Mandela é, aliás, um dos seus modelos de vida. Com o ex-líder da luta contra o apartheid na África do Sul aprendeu o verdadeiro significado do perdão, a importância de reivindicar direitos, de estabelecer limites, de dizer não na altura certa, de ouvir a voz interior, enfrentando medos, dando-nos aos outros para, assim, chegar ao autoconhecimento.

Formada em Psicopedagogia Curativa, é casada e tem duas filhas, uma com 13 anos e outra com 8. "Estão numa idade em que facilmente se deixam atrair por telemóveis, tablets, redes sociais, Facebook, Instagram, Twitter. Para mim é importante que elas redescubram tempo para estar com as pessoas", diz, sempre de sorriso rasgado, mas por vezes tímido.

O sorriso e a voz calma com que fala são duas das suas características que prendem a atenção. Em tempos em que muita gente fala aos gritos e mesmo assim nada ouve, Eugénia Quaresma é um contraste, suave e meigo, na algazarra dos dias.

Num seminário a propósito do centenário de Nelson Mandela, assinalado a 18 de julho, disse que foi com ele que percebeu o verdadeiro significado do perdão. É diferente ouvir falar de perdão em teoria e ver alguém a praticá-lo de facto?
Percebi que o perdão podia ter uma aplicação mais abrangente do que aquela que eu conhecia. Com Mandela percebi que podia ter uma aplicação política e que podia mudar uma comunidade. É muito mais poderoso do que só aquilo que nós ouvíamos falar. Como é que funciona na prática a reconciliação. E, para isso, ajudaram muito os filmes sobre a Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul em que víamos o que é esta coisa de perdoar: olhar nos olhos do outro que fez mal e só depois de haver essa conversa é que se pode dar a reconciliação. Só com o perdão é possível recomeçar de novo. Se não houver perdão não se consegue reconstruir uma comunidade, a vida, a sociedade. Está-se sempre atrás da vingança. Se nós percebêssemos isso no nosso dia-a-dia se calhar vivíamos de maneira diferente.

Porque é que a prática do perdão parece tão difícil? Conseguir perdoar os outros e, antes de mais, perdoar-nos a nós próprios e aceitar-nos. Porque é que não o conseguimos fazer?
Antes de mais tem que ver com a aceitação. Às vezes temos dificuldade em aceitar que aquilo que eu faço com a melhor das intenções pode prejudicar o outro. E aceitar que eu, mesmo que não queira, posso estar a fazer mal ao outro. Há pessoas que têm muita facilidade em perdoar os outros mas não conseguem perdoar-se a si próprias. Por outro lado, há pessoas que não conseguem perdoar os outros. Somos convidados à maturidade, a ir praticando. A nível pessoal penso que o perdão passa mesmo pela aceitação e por acreditar que é possível fazer diferente.

Há um défice de autoconhecimento na sociedade atual?
Existe esse défice de autoconhecimento. Há pessoas que têm dificuldade em estar com elas próprias. Vivemos num tempo em que é tudo muito à pressa. E o autoconhecimento exige estarmos muito tempo a sós, em autorreflexão, entrar em contacto com coisas de que não gostamos tanto, com feridas existenciais. Se a pessoa não estiver predisposta a isto não se conhece e não se dá aos outros. Pensando na timidez, por exemplo. É um bocadinho isso. Tenho medo da reação do outro e então fecho-me. É preciso autoconfiança e que o outro, do outro lado, me deixe à vontade para que eu possa conhecer-me. O autoconhecimento faz-se muito na relação pois só na relação com os outros é que eu sei aquilo que valho.

Experimentar sem ter medo de errar as vezes que for necessário...
Exatamente. Sem ter medo de errar. Aguentar as consequências.

Os vazios sempre existiram, e os estratagemas para os preencher também. Hoje, o uso que se faz da tecnologia é apenas mais um. Sendo mãe, como é que lida com o impacto das tecnologias, das redes sociais?
Tenho duas filhas numa idade em que facilmente se deixam atrair por telemóveis, tablets, redes sociais, Facebook, Instagram, Twitter. Para mim é importante que elas redescubram tempo para estar com as pessoas. Como mãe mas também como catequista, penso que é importante dar o devido lugar às tecnologias, para comunicar com quem está longe mas valorizar quem está perto, não esquecer de dialogar de uma forma harmoniosa e não conflituosa com quem está à nossa volta. As minhas filhas, até pode ser pela idade, têm tendência a entrar em conflito, e eu tenho de gerir isso. E às vezes é retirando-lhes as tecnologias e fazendo coisas juntas. É engraçado que quando elas não têm encontram uma forma [de ocupar o tempo] e encontram interesses em comum.

É curioso que, quando sabem que não há mesmo, não há problema algum...
Não há internet, não há televisão, há jogos, há livros, há passeios, muitas outras coisas. E obriga-me também a mim a ter tempo para estar com elas e fazer coisas diferentes. Muitas vezes é fácil, ou porque os pais estão ocupados ou porque há tarefas em casa, entregar a tecnologia para...

Ser ela própria quase um substituto dos pais...
... ou para conseguir a serenidade que é necessária para realizar algumas tarefas. Outro desafio é, agora deixam as tecnologias e vamo-nos envolver todas nas tarefas domésticas para não ser só a mãe a fazê-las. Por exemplo. Isto é um desafio diário.

Mas não se pode tirar o telemóvel e a televisão e não dar alternativa...
A pequenina diz muito: "Eu não tenho nada para fazer!" Há esta necessidade de atividade. É muito importante recuperar os tempos ao ar livre, que as nossas crianças estão a perder muito. Ficam muito tempo sentadas, fechadas no quarto, em frente ao telemóvel, computador, televisão, consolas. É preciso recuperar este tempo ao ar livre. Penso que toda essa hiperatividade, agora tão diagnosticada por aí, desapareceria.

Mas a nossa cultura também ensina às pessoas que não podem estar sem nada para fazer...
Nós precisamos dos tempos de descanso. Mas também de usar a criatividade. Arriscar fazer. Precisamos do vazio, do nada, para sermos criativos.

Mandela foi um homem que se transformou na prisão. Todos nós somos seres em evolução. Mas porque é que acha que é tão difícil nos tornarmos versões melhores de nós próprios?
Porque isso implica enfrentar medos, implica sair da zona de conforto, às vezes acomodamo-nos às expectativas que os outros têm de nós. O desafio é sair da nossa zona de conforto, ouvir a nossa voz interior, que nos vai, de certa forma, dizendo quem somos, através do que gostamos, dos nossos talentos e aptidões, e ir perseguindo essa razão de existir. Aquilo que nós procuramos é ter um sentido para a vida. E isso nós conseguimos escutando a nossa voz interior e não tendo medo de perseguir estes sonhos e estes desejos que, de alguma forma, não só nos realizam mas também nos empurram para um estar ao serviço dos outros.

Quando é que a Eugénia se tornou catequista?
Há 25 anos que dou catequese, comecei aos 17 anos, na paróquia da Amora, onde cresci. Depois de ter completado a catequese, estive ali um ano a tentar perceber o que é que seria a minha vocação. Na altura dizia que "catequista nem pensar". Mas, um ano depois de ter feito o crisma, depois de um ano de reflexão, continuaram a insistir comigo e nunca mais parei.

A sua formação académica propriamente dita é em que área?
Psicopedagogia Curativa. O curso começou na Universidade Moderna e depois passou para a Lusófona. O nome fazia alguma confusão e alguns alunos adotaram o nome de psicopedagogo clínico. Mas eu depois percebi o porquê do curativa: o sentido é o de curar e integrar. É transformar aquilo que recebo e integrá-lo no meu dia-a-dia. Não tendo tido oportunidade de exercer, fiz estágios, pós-graduação, com psicopedagogas brasileiras, que nos deram uma perspetiva do ensino, ferramentas para entrar no mercado de trabalho. No início nós sempre dizíamos que não queríamos tirar o lugar aos psicólogos, que integrávamos equipas multidisciplinares. O psicólogo trabalha muito a área emocional, o psicopedagogo trabalha a área de interseção, do ser humano em construção. Isso para mim é uma visão que faz muito sentido. É engraçado que eu, quando comecei a trabalhar na Obra Católica, em 2001, a atender a população migrante de Lisboa, sempre fui tentando perceber como é que podia aplicar isso.

E como foi parar à Academia de Líderes Ubuntu, inspirada em líderes como Nelson Mandela, Mahatma Gandhi, Martin Luther King ou Aristides de Sousa Mendes?
O projeto foi apresentado em 2010. Chegou-me pela internet. Na altura era destinado só a migrantes africanos e descendentes de migrantes africanos, e o que me chamou a atenção foi o slogan: "Eu sou porque tu és" e "Eu só posso ser pessoa através de outras pessoas".

Não conhecia o conceito ubuntu?
Não. Vi pela primeira vez naquele cartaz. Achei piada. Depois fui à apresentação. Era para um grupo restrito, dos 16 anos 30 anos, mas eu já tinha 35. Pensei que não era para mim e que ia levar a informação para a paróquia. Mas havia alguém na assistência que perguntou se não estendiam um pouco mais. E depois estenderam até aos 35 anos, chamaram-me para a entrevista e pude, assim, entrar. Vivi sempre aquele ano como uma oportunidade única. E realmente foi. Os encontros eram aos sábados, de 15 em 15 dias, na Universidade Católica.

Como é que transportava depois para fora aquilo que trazia de lá?
Pois, ouvíamos coisas lá que nos faziam pensar, vínhamos maravilhados. Acho que o maior impacto foi logo em casa, pois se ali se falava de liderança servidora, eu percebi que em casa conseguia convencer pouco o pessoal a alinhar nisto. Percebi o conceito de liderar pelo exemplo.

Quando diz em casa, refere-se só às suas filhas ou ao seu marido também?
Ao meu marido também. A relação homem-mulher também mudou. Isso também aconteceu com a Obra Católica pois fiquei mais consciente daquilo que são os direitos e a tornar-me mais reivindicativa. No fundo a despertar mais para o conceito da cidadania ativa. Isso faz de nós pessoas mais atentas e reivindicativas, no início, depois mais pacientes, pedagogas para levar a água ao moinho. Vai acontecendo. Foi um caminho. Percebi perfeitamente uma consciência do impacto da parentalidade. O exemplo dos pais, seja bom ou seja mau, está sempre lá.

Tem sempre peso.
Esse impacto nos filhos existe sempre. E isso, de certa forma, tornou-me mais firme. A firmeza de um não, que nos primeiros filhos é difícil, porque eles são muito sedutores, é algo que percebemos que é importante. O não também é educativo. Dizer não também é um ato de amor.

Embora as pessoas nem sempre entendam isso.
Às vezes tinha a sensação de que o que era esperado era que dissesse sempre que sim. Se não dissesse não tinha de viver com as consequências de não ter dito não na altura certa.

Porque é tão difícil impor limites? Por medo que os outros depois já não gostem de nós?
Por um lado sim. Do ponto de vista do educador, das crianças, o que acontece é que estamos sempre a ver o que o menino ou a menina desejam, depois queremos fazer o corte, mas já é tarde. O não tem de ser dito na altura certa, sempre que possível com explicação. Mas outras vezes não dá para explicar. É um exercício de confiança. Como se dissesse tens de confiar em mim e este não é para tua segurança. Vivemos num mundo com alguns perigos. Construir uma relação em que os nossos filhos tenham confiança em nós - e mesmo não concordando estejam connosco - é um desafio.

Diz que nasceu em Lisboa cinco dias depois da independência de São Tomé e Príncipe. Sempre viveu na Amora?
Sim, sempre. Os meus pais vieram para Portugal antes da independência. Quando esta aconteceu [a 12 de julho de 1975] eles estavam cá. Na altura perguntaram-lhes se queriam nacionalidade portuguesa. Como já estavam a trabalhar cá disseram que sim. O meu pai trabalhava na Marinha Mercante. A minha mãe era enfermeira. Casaram-se no ano a seguir e não lhes fez sentido regressar. Pensaram também talvez que podiam ajudar mais a família estando cá do que indo para lá. Depois tiveram filhos. Somos três, embora um dos meus irmãos já tenha falecido em 2000.

Que relação mantém com as suas raízes são-tomenses? Costuma ir lá com regularidade?
Não com tanta como gostaria. Contam-se pelos dedos as vezes que lá fui. Fui com os meus pais quando tinha 2 anos, ainda era só eu, depois eles esperaram 19 anos para levar a família toda, foi quando fui a segunda vez, depois voltei em 2010, com o meu marido e as minhas filhas. E fui agora recentemente, na Páscoa, para levar a Academia Ubuntu aos jovens de São Tomé. A ideia é desenvolver também lá, semear, para que este conceito vá crescendo. A Academia é uma plataforma de encontro entre diferentes culturas, nacionalidades, religiões. Assenta no conceito de liderança servidora e vai buscar diferentes líderes.

O que é que trouxe no coração lá de São Tomé?
A paisagem muito bonita, os encontros com a família, tenho lá muitos tios e primos. E depois esta necessidade de trabalho que há a ser feito, há ali muita coisa a ser feita com a população. Há ali um lado de bondade, muito genuíno, mas também há a necessidade de trabalhar e de promover ali outros valores. É preciso transpor o conceito ubuntu para lá do quintal grande, do que está perto, como me disse o bispo de São Tomé, D. Manuel António, é preciso levá-lo a outros níveis. O da liderança é um deles. A diáspora acredita muito pouco na política lá, apesar de existirem alguns, que vamos ouvindo, que querem realmente trabalhar pelo bem do povo.

O descontentamento patente na diáspora existe também lá?
Talvez se manifeste mais nas pessoas que saíram para fora para estudar e que voltaram para lá. Estão mais conscientes de que é preciso fazer alguma coisa para mudar. Tem de haver aqui uma motivação, um acreditar que é possível fazer diferente, e que temos capacidade para mudar. Quando estivemos lá com a Academia, uma irmã dizia aos jovens: "Acreditem, vocês são capazes!" E é preciso fortalecer este desejo de mudança porque há jovens que a querem realmente.

O que é preciso mudar? Os líderes? O paradigma? Apostar mais nalgumas áreas?
Está-se a procurar apostar na educação. Mas acho que era mesmo levar este conceito de liderança servidora a todos os líderes, os que estão no governo, os que não estão no governo.

Os líderes são-tomenses em geral?
Líderes são-tomenses em geral. Pode haver um ou dois que estão a tentar fazer diferente, mas sentem-se sozinhos porque há ali qualquer coisa que põe travão. O mundo da política não é fácil. Fala-se, em todo o lado, da corrupção, mas nalguns países é mais gritante do que noutros. E, portanto, é preciso apostar não só no desenvolvimento das pessoas mas também das infraestruturas, porque isso ajudaria muito, as diferenças entre várias zonas da ilha saltam à vista. Num lado, apostou-se nas infraestruturas, os turistas passam e acham tudo muito bonito, mas noutro lado não houve tanto essa aposta nas infraestruturas que são necessárias. É preciso apostar aí. Vou vendo iniciativas que se estão a fazer na saúde, na higiene, na educação, mas é preciso fazer mais.

O turismo é também um motor importante da economia. Basta olhar, neste momento, para Portugal...
Sim, o turismo aliado à formação. O meu pai é muito sensível a esta área, trabalhou muitos anos na Marinha Mercante, no paquete Funchal, onde servia as pessoas. Ele chega lá e diz que um dos seus sonhos era abrir uma escola de formação, de hotelaria, para agilizar. Diz que se a paisagem já é só por si tão bonita, agora é preciso pensar como é que se vai melhorar o serviço. Os turistas devem levar o melhor da paisagem, das pessoas, mas também do serviço. A nível da educação sei que estão a ser feitas várias coisas neste momento, mas ainda não é suficiente. É preciso trabalhar com os alunos, mas também com as famílias. É um trabalho lento.

Tendo em conta que é uma população tão pequena [200 mil habitantes] poderia pensar-se que era tudo mais fácil. Mas por que razão, ao que parece, afinal não é?
É uma boa pergunta. Se calhar é preciso estarem todos a remar para o mesmo lado. Com este trabalho aqui ganhei a consciência de que a diáspora tem um papel importante na reconstrução. Às vezes vemos pessoas a dizer que não acreditam na mudança e não têm consciência de que podem contribuir para melhorar qualquer coisa no país. É preciso pensar como comunidade. Há associações que estão cá em Portugal, como a Mé Non, que querem trabalhar pelo país.

Em relação ao tema das migrações, com o qual trabalha e que está todos os dias nas notícias, a propósito da Líbia, de Itália, de Malta, da Grécia, de Espanha, de Marrocos, etc... Por que motivo nada muda? Há imensos pacotes de ajuda por parte da UE. O que é que está errado? As políticas são muito paternalistas, a corrupção nos países de origem desvia as ajudas. O que é que aqui neste dossiê não funciona há anos e anos?
É um bocadinho de tudo. Há a corrupção, países não democráticos, minam o diálogo. É preciso que a ajuda ao desenvolvimento seja usada para esse fim e não para outros, como nos tem chegado, por exemplo, para fins de segurança. É desvirtuado o propósito. Nós temos a experiência de que quando o dinheiro para o desenvolvimento é mesmo aplicado nisso as coisas funcionam. O diagnóstico está feito, agora falta atuar, se calhar atuar em rede.

Vimos o presidente angolano, João Lourenço, no Parlamento Europeu, dizer que é realmente uma vergonha para os líderes africanos a vaga de migração que vem em direção à Europa. A tendência tem sido sempre passar a culpa para a Europa e jogar, eternamente, com o sentimento de culpa. Até quando vai continuar a ser assim?
A fonte das migrações são as guerras e os conflitos armados. Como é que nós conseguimos parar os conflitos armados? Não pode ser só a Europa a enviar, por exemplo, forças de paz. Têm de ser os líderes, a partir de dentro, a decidir fazer a paz. As coisas assim mudavam. O continente africano é muito rico em matérias-primas e nalguns países está-se a apostar no desenvolvimento. Mas essas imagens não passam muito. Passam mais as das guerras e das desgraças. E, por isso, há uma visão desequilibrada do continente. É muito rico, com muitos contrastes, diversos países, diversas culturas. Há a tendência para ver África como se fosse um país único. E não é. Claro que é evidente que há um esforço de reconciliação que tem de ser feito e feridas que têm de ser saradas por causa do processo de colonização de diversos países europeus. E que deixaram marcas. E há que ir à raiz do problema, combatendo a corrupção, os conflitos, a venda de armas. É preciso que todos queiram promover a paz e não ponham alguns interesses económicos em primeiro lugar.

Portugal é dos países mais abertos a migrantes e refugiados. No trabalho que faz, que experiências tem tido com estas pessoas?
Algumas pessoas são imigrantes e escolhem Portugal para viver porque vêm à procura de trabalho, para prosseguir os estudos, por questões de saúde, porque querem uma vida melhor. Grande parte da comunidade migrante fala português e a língua é aqui um fator que facilita a integração. Quando são pessoas que não falam a língua percebe-se rapidamente que, falando português, facilmente participam na nossa sociedade. Se souber a língua e tiver trabalho, a pessoa faz o seu caminho. Depois pode haver um ou outro caso de xenofobia e racismo. Há testemunhos nesse sentido. Mas também há testemunhos muito bonitos de comunidades que vivem lado a lado como irmãs.

Com quantas nacionalidades trabalham na Obra Católica para as Migrações?
Na Obra Católica o atendimento era feito por vagas. Houve um ano em que foram as pessoas retiradas da Guiné-Bissau, outro em que foram os refugiados de Timor-Leste, depois foi a vaga dos países de Leste e depois do Brasil. Com os da Síria não trabalhamos diretamente. Vamos conhecendo alguns testemunhos e são a prova de que, sabendo a língua e tendo trabalho, nem a religião é obstáculo. Há uma paróquia que acompanha uma família muçulmana e essa família pediu para ir ao Santuário de Fátima. A relação chega a este ponto. Há esta integração. A questão do reagrupamento familiar é importante porque a família não pode estar bem se uma parte da família vem e o resto não pode vir. Essa família está inquieta. Não está em paz. Há famílias que vieram e ficaram e estão felizes, e há outras famílias em que as pessoas ambicionavam juntar-se a outros familiares noutras zonas. E, por isso, quando chegaram a Portugal e quando tiveram oportunidade saíram para ir ao encontro desses familiares. E também, claro, pessoas que não se adaptaram e resolveram sair. Há algumas, mas não se pode generalizar.

Entende que o facto de os portugueses serem um povo de emigrantes ajuda também a perceber mais facilmente a posição dos que também imigram para cá?
Acho que sim, as pessoas estão disponíveis, predispõem-se a acolher, a ajudar. Agora a nossa ajuda não pode ser paternalista. Temos de contar com a autonomia das pessoas. E é por isso que para algumas instituições é difícil fazer o luto: eu dei tudo e ela não aproveitou! Nós acolhemos as pessoas, mas preparamo-las para autonomia, não queremos criar uma relação de dependência. E as pessoas também não estão à procura dessa dependência. Estar disponível para acolher não é estar disponível para prender. Jesus, quando enviou os discípulos, dizia: se as pessoas vos quiserem acolher, entrem na casa delas, senão sacudam os pés e sigam em paz. Quem acolhe tem de ter esta serenidade: eu estou aqui para ti, se quiseres aproveitar, muito bem, se não quiseres, bom caminho. Não podemos obrigar a pessoa a seguir o caminho que nós decidimos. Jesus, quando curava, às vezes só um voltava atrás para agradecer, mesmo assim ele não deixava de curar. Para os cristãos, é importante não nos esquecermos dos valores que nos impelem à hospitalidade e à integração.

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