Caricaturas antissemitas "animam" Carnaval belga. "Impensável", diz Comissão Europeia

Carnaval da cidade flamenga de Aalst, classificado pela UNESCO como património da humanidade, incluiu carro alegórico com caricaturas de judeus ortodoxos com ratazanas e sacos de dinheiro, pessoas com trajes da organização racista americana Ku Klux Klan e<em> black face</em>. "São caricaturas típicas de 1939", diz o grão-rabino da Holanda. Um "festival de ódio" condenado pela Comissão Europeia.
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Hate fest - festival de ódio. É o título escolhido pela conta de Twitter 911 para reportar sobre o Carnaval da cidade flamenga de Aalst, na Bélgica, classificado pela UNESCO como património cultural da humanidade: "A parada incluiu caricaturas antissemitas de judeus ortodoxos sentados em sacos de dinheiro e acompanhados de uma ratazana, homens com trajes da KKK e pessoas com black face [cara pintada de castanho, para parecerem negros] enquanto milhares aplaudiam e riam."

Já o Brussels Times garante que entre o público do desfile deste domingo nem toda a gente achou graça: "A representação de judeus ortodoxos de carantonhas trouxe de volta memórias dos folhetos de propaganda nazi e de publicações como o Der Stürmer [tabloide alemão semanal publicado de 1923 a 1945, conhecido pelo antissemitismo e pela propaganda nazi), dos anos 1930, espectadores chocados disseram ao jornal."

Na notícia refere-se também a presença de um político nacionalista belga, Guy D'haeseleer, junto à zona do desfile onde havia pessoas com trajes brancos de barretes pontiagudos, similares aos da organização supremacista branca americana Ku Klux Klan. O jornal certifica no entanto que os trajes tradicionais católicos usados em procissões belgas, espanholas e italianas são muito semelhantes.

Mas o choque reportado pelo Brussels Times, que refere não haver ainda comentários do presidente da câmara da cidade, Christoph D'Haese, só chegou ao jornal belga praticamente um dia após publicações israelitas como o Jerusalem Post ou dizendo especificamente respeito a assuntos judaicos, como a Jewish Telegraphic Agency , terem noticiado a situação e dado voz a protestos como o do rabino principal da Holanda, Binyomin Jacobs: "É chocante. Trata-se de típicas caricaturas antissemitas de 1939."

E uma busca no Google em notícias encontra sobretudo reporte da situação em sites anglófonos. Mas a Comissão Europeia já condenou o ocorrido: "Deveria ser óbvio para todos que este tipo de representação nas ruas da Europa é absolutamente impensável, 74 anos após o holocausto", afirmou o porta-voz da CE, Margaritis Schinas, quando questionado sobre o assunto na conferência de imprensa desta terça-feira. "É responsabilidade das autoridades nacionais tomar as medidas adequadas de acordo com a lei."

Organizações judaicas apresentam queixa

Também os representantes dos judeus de língua francesa e flamenga da Bélgica se manifestaram já, apresentando queixa à organização federal anti-discriminação UNIA (do latim unio - reunião, união - antes designada Centro Interfederal para a Igualdade de Oportunidades) : "Numa democracia como a belga, não há lugar para coisas deste tipo, no Carnaval ou noutra ocasião qualquer."

Mas de acordo com a Jewish Telegraphic Agency não é a primeira vez que nos desfiles de Carnaval de Aalst se "brinca" com temas relativos a judeus: em 2013, diz o texto da JTA, "um grupo diferente [daquele que é responsável por este carro alegórico] criou um carro que parecia um vagão de comboio dos que os nazis usaram para transportar judeus para os campos de extermínio. Os seus criadores marcharam junto do carro vestidos de oficiais nazis e judeus ortodoxos. Um poster no vagão mostrava políticos belgas flamengos vestidos de nazis com recipientes onde se lia Zyklon B, o gás venenoso usado pelos nazis para assassinar os judeus nos campos de concentração."

Em dezembro, a UNIA tinha expressado a sua preocupação com o antissemitismo na Bélgica, considerando existir a necessidade de um observatório específico para o antissemitismo no país. "Vamos pedir ao ministro Kris Peeters, agora com a pasta da Igualdade, para iniciar a criação de um plano de ação interfederal contra a discriminação e o racismo. O antissemitismo continua a ser um problema", lê-se na página da organização.

Este comunicado surgiu em reação a um inquérito efetuado a 16 mil judeus em 12 países da União Europeia pela Agência Europeia dos Direitos Fundamentais. "Os gráficos expostos no relatório revelam um retrato assustador da Bélgica. À exceção da França,a Bélgica é o país onde so judeus reportam sentir mais hostilidade na rua. Dos inquiridos, 81% apontam o espaço público como o lugar onde sentem mais o ódio contra si. A média europeia é de 70%", diz o texto, que cita a diretora da UNIA, Els Keytsman: "Estes números exigem uma abordagem estrutural sob a forma de uma unidade de vigilância e de um plano em várias áreas. O antissemitismo tem muitas faces. Existem muitas formas de ódio aos judeus, ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Há formas de ódio fundadas no conflito israelo-palestiniano mas também as que vêm da extrema-direita. E também vemso uma espécie de antissemitismo de todos os dias, sob a forma de estereótipos e tudo o que tem a ver com o negacionismo."

"A ponta do iceberg"

Apesar desta preocupação da UNIA e dos impressionantes números do relatório, as queixas apresentadas são, diz a UNIA, poucas. Na Bélgica como na Europa toda. "As pessoas não acorrem a reportar os incidentes. E a Bélgica não é exceção. Este fenómeno de 'ponta do iceberg' ocore com outrso grupos. Tem a ver ao mesmo tempo com a desconfiança que as vítimas sentem mas também com o facto de acharem o racismo tão normal que já nem lhe reagem. Reunimos regularmente com associações judaicas para tomar o pulso ao problema." Ainda assim, prossegue a organização, "os incidentes sérios são hoje em dia felizmente punidos pela lei. Por exemplo em 2018 a UNIA foi parte num processo contra o vândalo que causou estragos no bairro judeu de Antuérpia e também no processo relativo ao ataque ao Museu Judaico de Bruxelas."

Esther Mucznik, ex presidente da Comunidade Israelita Portuguesa e diretora da associação Memoshoa (Associação Memória e Ensino do Holocasto), fundada em 2009, mostra-se chocada com as notícias da Bélgica. "Não tinha conhecimento deste caso concreto. Acho horrível. É um insulto tremendo à memória das pessoas que morreram." E reflete: " Acho que durante décadas vigorou uma espécie de tabu em relação a este assunto, era impensável fazer paródia, assumir um antissemitismo tão desbragado e ostensivo, como esse. E deixou de haver esse tabu. Porquê? talvez devido ao desaparecimento progressivo dos sobreviventes, à crise democracia representativa... Houve uma libertação da palavra. E agora o vírus irrompe e aparece à luz do dia. Mas esteve sempre lá."

Sobre a forma de lidar com tal coisa, hesita. "Nunca fui apologista de proibição, nem sequer da culpabilização da palavra, de as pessoas serem presas pelo que dizem. Mas há limites à liberdade de expressão, claro." E quais? Neste caso, o que deveria acontecer? "Acho que devia ser simplesmente proibido, devia ser crime." Que crime? Esther Mucznik volta a hesitar. "Não sei... Ofensa à história, à humanidade, não só aos judeus. Mas isto é muito complexo."

Há um desalento na voz desta judia de origem polaca."As pessoas procuram sempre um bode expiatório. E os judeus são o bode expiatório tradicional: mandam no mundo, têm o dinheiro, são poderosos. Veja o Soros que está sempre a ser atacado na Hungria... Os nazis mataram a maioria dos judeus que viviam na Europa. Já só há dois milhões no continente e muitos estão a sair. De França por exemplo estão a sair muitos. Alguns vêm para cá, mas a maioria vai para Israel."

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