Indígenas, quilombolas, travestis. Minorias avançam no Brasil mesmo sob Bolsonaro

O cacique Marcos Xukuru, o descendente de escravos Vimar Kalunga ou a professora trans Duda Salabert são apenas faces de vitórias nas eleições municipais em condições adversas, como nunca, no país. "Reflexo do descontentamento com as políticas de restrição e violação dos nossos direitos no governo", resume líder de associação indigenista ao DN
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"Se o estado brasileiro não sabe governar, nós sabemos governar, e diga ao povo que avance, que avance". As palavras são do cacique Marcos Xukuru, novo prefeito da cidade pernambucana de Pesqueira, mais populosa que Faro, Santarém ou Évora, num dos episódios de uma série de vídeos de campanha que teve direito a banda sonora de Caetano Veloso e elogios dos barões do marketing político do Brasil.

E o cacique Marcos, que já havia sido notícia no DN por conseguir na Corte Interamericana de Direitos Humanos que o Estado brasileiro pagasse um milhão de dólares aos índios xukuru por desrespeito e morosidade na demarcação dos seus territórios, é apenas a face mais pop dos novos políticos indígenas.

Eleito pelo Republicanos, partido de direita ligado à IURD, cometeu a proeza de juntar na sua coligação também o PT, de Lula da Silva, e derrotar a prefeita cessante, Maria José, do DEM, de centro-direita - o triunfo não foi, entretanto, homologado por Xukuru responder a processo em tribunal sobre ocupação de património.

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Outra apoiante do cacique é Sônia Guajajara, umas das principais lideranças indígenas do Brasil, candidata em 2018 a vice-presidente de Guilherme Boulos, o político do esquerdista PSOL de quem se fala por ter, contra as expectativas, chegado à segunda volta na maior cidade do país São Paulo.

Entretanto, além de Xukuru, a partir de janeiro de 2021 a política brasileira contará com novos protagonistas que se declaram indígenas, de acordo com os dados do Tribunal Superior Eleitoral, na gestão autárquica de mais nove cidades brasileiras. Na eleição municipal anterior, de 2016, apenas seis haviam sido eleitos.

No Acre, o ashaninka Isaac Piyãko (PSD), eleito há quatro anos, foi agora reconduzido, em Marechal Thaumaturgo. Em Roraima, foram eleitos Tuxaua Benisio (Rede), em Uiramutã, e Dr. Raposo (PSD), em Normandia.

Clovis Curubão foi eleito prefeito do município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas; no Alagoas, Tony de Campinhos é o novo prefeito de Pariconha; Jair Xakriabá (Republicanos) ganhou as eleições em São João das Missões, em Minas Gerais; e Roque Kaingang (MBD), será prefeito de Entre Rios, em Santa Catarina.

Destaque finalmente para Eliselma Silva de Oliveira (DEM), a única mulher autodeclarada indígena eleita prefeita. De etnia potiguara, ela vai administrar o município de Marcação, na Paraíba, pelo segundo mandato seguido.

O sucesso dos indígenas surge numa altura em que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é acusado de racismo contra essas populações: "Com toda a certeza, o índio mudou. Está evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós", disse em janeiro deste ano numa das suas transmissões nas redes sociais, a propósito da criação do Conselho da Amazónia, motivando ação em tribunal de Sônia Guajajara.

O New York Times, por sua vez, destacou em artigo do ano passado uma frase do então deputado Bolsonaro a propósito dos Estados Unidos: "Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou os seus índios no passado e, hoje em dia, não tem esse problema no país".

Dinaman Tuxá, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a APIB, resumiu ao DN o que significam estas vitórias.

"O aumento das candidaturas nas eleições é um reflexo do descontentamento dos indígenas com as políticas de restrição e violação dos nossos direitos do Governo Bolsonaro, um governo que milita diariamente no enfraquecimento da política indigenista e ambiental", disse Dinaman, que pertence à etnia Tuxá e é formado em direito.

"A APIB fez um esforço na base para informar, formar e qualificar lideranças no campo político partidário de forma a desconstruir essas grandes oligarquias que dominam o poder municipal e tentam tornar os povos indígenas invisíveis", continuou. "Nessa perspetiva, houve um aumento de 27% nas candidaturas, face ao pleito municipal anterior, e um alto número também de eleitos".

Entre quilombolas, comunidades espalhadas por todo o Brasil com descendentes de comunidades formadas por escravos fugitivos entre o século XVI e 1888, ano da abolição da escravatura no Brasil, ganha destaque a eleição de Vilmar Silva, do quilombo Kalunga, de 40 anos, o novo prefeito de Cavalcante, no Goiás.

Em Cavalcante, apesar de corresponder a cerca de 80% da população local, a comunidade Kalunga, o maior quilombo do Brasil, ainda não havia conseguido eleger um prefeito. "Foi preciso romper com estigmas históricos que ainda colocam os quilombolas na incómoda posição de bons para votar, não para serem votados", disse Vilmar ao portal UOL.

Na eleição municipal, entretanto, 57 representantes dos quilombolas foram eleitos: além de Vilmar, venceu as eleições um vice-prefeito no Maranhão e 55 candidatos a vereadores em cidades de dez estados diferentes do Brasil, segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

Para Sandra Pereira Braga, coordenadora da CONAQ em Goiás, o resultado representa "uma revolução". "É muito importante para a CONAQ ter esses representantes porque reforça que nós precisamos ocupar espaço de poder e isso vai servir de modelo para todo o Brasil".

O discurso de Bolsonaro sobre quilombolas ao longo da sua carreira política também foi alvo de críticas. "Eu fui a um quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador eles servem mais", disse em pré-campanha para as eleições presidenciais de 2018.

"Se eu chegar lá (à presidência), não vai haver dinheiro para ONG. Esses vagabundos vão ter que trabalhar. Pode ter a certeza que se eu chegar lá, no que depender de mim, todo o mundo terá uma arma de fogo em casa e não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola", declarou noutra ocasião.

Nenhuma minoria, entretanto, teve um aumento tão substancial como a dos que se identificam como transexuais e travestis - 25 pessoas foram eleitas para ocupar cadeiras nas Câmaras de Vereadores de 22 cidades diferentes do Brasil, um crescimento de 212% em relação ao sufrágio de 2016, segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e do portal UOL.

Em São Paulo, que é o maior colégio eleitoral do país, elegeram-se Thammy Miranda (PL), ator que nasceu do sexo feminino e protagonizou controversa propaganda publicitária recente, Erika Hilton, Carolina Iara e Samara Santana, todas do PSOL.

Há ainda 176 pessoas que se identificam como transexuais ou travestis eleitas suplentes nos seus municípios.

Mas o destaque vai para as duas candidatas transexuais mais votadas para o cargo de vereadora em duas capitais do Brasil - Linda Brasil (PSOL), em Aracaju, Sergipe, e a professora Duda Salabert, que, com 37.613 votos, se tornou a mais votada da história da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, o segundo estado mais populoso do Brasil.

Salabert disse ao jornal Estado de Minas que vai priorizar a diversidade, o que não é surpreendente, e a educação, o que também é natural, dado o "professora" no seu nome de guerra eleitoral.

Mas não terá vida fácil. O segundo mais votado em Belo Horizonte foi Nikolas Ferreira (PRTB), ligado ao grupo evangélico Comunidade Graça e Paz, militante do movimento Direita Minas e bolsonarista convicto. "Eu ainda irei chamá-la de 'ele'. Ele é homem, é isso que está na certidão dele, independentemente do que ele acha que é".

Duda não se importa porque "quanto mais diverso for o Legislativo, melhor vai ser o debate e a presença de pessoas conservadoras é muito bem-vinda para o debate". "Agora, o que não toleramos é a violação das instituições brasileiras, das leis e da Constituição porque transfobia é crime inafiançável".

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