História dos turcos: 2000 anos do Pacífico ao Mediterrâneo

História dos turcos é uma constante progressão para Ocidente que começou por ser um ato de conquista para se tornar uma vocação civilizacional. Virar-lhes as costas seria um erro tremendo.
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É uma história extraordinária a dos turcos, como tão bem a sintetizou o historiador francês Jean-Paul Roux no título de um livro seu que fui buscar para título desta crónica. Extraordinária porque a sua história é uma constante progressão para Ocidente que começou por ser um ato de conquista para se tornar uma vocação civilizacional. A obsessão por Constantinopla, a moderna Istambul que se tornou turca em 1453, assim como a insistência em Viena (dois cercos falhados, em 1529 e em 1683) revelam uma tentação europeísta que se tornou evidente do ponto de vista cultural com os últimos sultões otomanos, foi confirmada em absoluto por Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia em 1923, e reafirmada por Recep Erdogan, então primeiro-ministro, ao formalizar em 2005 as negociações para a adesão à União Europeia (UE).

Muitas vozes têm criticado os turcos nas últimas semanas, por causa da operação militar na fronteira com a Síria, usando-se argumentos que misturam a condenação de Donald Trump por ter abandonado as milícias curdas, a valorização (justa) do papel destas no combate ao ISIS e as acusações de neo-otomanismo de Erdogan, agora presidente.

É tentador tentar explicar como a revolta popular contra Bashar al-Assad se transformou numa guerra em que os interesses das várias fações locais receberam apadrinhamento de potências tão diferentes como os Estados Unidos e a Rússia, a Arábia Saudita e o Irão, Israel e a Turquia, o Reino Unido e a França. E outro tema aliciante seria relacionar o conflito sírio com o problema do terrorismo e a questão dos refugiados, mas fixemo-nos no título deste artigo: a vocação ocidental dos turcos.

Bernard-Henri Lévy (BHL), célebre por defender a intervenção da NATO contra a Sérvia em 1999 e por acreditar também que as bombas em 2011 sobre Muammar Kadhafi transformariam a Líbia numa democracia, escreveu no The Sunday Times a apelar à expulsão da Turquia da aliança militar ocidental. Em simultâneo, o filósofo francês chama aos curdos "verdadeiros amigos do Ocidente". E é este ponto, como se houvesse falsos amigos do Ocidente, descartáveis até da NATO, que convém questionar. É fácil perceber que em causa estão os turcos, esses turcos que, como disse um dia Hugh Pope, correspondente em Istambul do The Wall Street Journal e autor de livros como Turkey Unveiled, sofrem de um complexo de cerco, talvez explicado porque no fim da Primeira Guerra Mundial as potências repartiram o território otomano entre toda a gente, dos franceses aos italianos, dos gregos aos árabes, dos curdos aos arménios, esquecendo a nacionalidade antes dominante.

Atatürk impôs os direitos dos turcos pela força das armas e também pela arte da diplomacia. E decidiu de vez ter o Ocidente como modelo, com um código civil inspirado no da Suíça, a adoção do alfabeto latino, os direitos iguais para as mulheres, o laicismo do Estado. Adnan Menderes confirmou este caminho com a adesão à NATO em 1952 e Turgut Özal em 1987 quando pediu a adesão à UE. Erdogan insistiu na opção UE, quando era elogiado por ter contrariado a tutela dos militares, europeizando assim a democracia turca. Também foi o líder turco que, admita-se, mais longe foi no reconhecimento dos direitos culturais da minoria curda do país, outra fonte de elogios na época.

Criticar hoje a Turquia, apesar de ainda há semanas se elogiar a resiliência da sua democracia por permitir a vitória da oposição em Istambul, é admissível; e justificável até, quando o foco é a política governamental. Mas virar as costas ao país de vez (depois do congelamento da candidatura à UE, a saída da NATO) como quer BHL é um erro tremendo, um ignorar da história, do percurso dos turcos desde as remotas origens na Ásia do Norte até à sua instalação na Anatólia e nos Balcãs (no período de decadência, o Império Otomano era chamado de "o homem doente da Europa", sim da Europa). E recordo a todos aqueles no Ocidente que se sentem emocionados com as guerrilheiras curdas como sinal de emancipação da mulher no islão, que não se esqueçam também de que uma das filhas adotivas de Atatürk foi piloto de caças e que em Istambul ou em Ancara são regra as mulheres de saia e de cabelos ao vento (apesar de hoje a primeira-dama usar lenço).

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