"Era inacreditável a vibração artística que existia na cidade durante a guerra"

Professor universitário e jornalista, o norte-americano Bill Carter realizou o documentário Miss Sarajevo que inspirou o tema dos U2 com o mesmo nome. No livro Fools Rush In conta a sua experiência na Bósnia.

Depois de uma tragédia pessoal, a morte inesperada da sua namorada, foi parar a Sarajevo, durante a guerra, para distribuir ajuda humanitária como membro de uma organização não oficial. Foi um chamamento?

Sim, vendo à distância, julgo que senti uma espécie de força da gravidade a chamar-me para Sarajevo.

Num determinado momento, entrou em contacto com os U2. Juntos organizaram ligações por satélite para que cidadãos de Sarajevo entrassem em direto durante os concertos da banda. Quão importantes foram esses momentos para chamar a atenção da comunidade internacional para o que se passava na Bósnia?

Para mim, na altura, como estava fechado na cidade, era impossível ter noção do impacto. Mas, aos poucos, os U2 foram-me passando informação e aquilo que estávamos a fazer aparecia nas primeiras páginas dos jornais. Percebi que estava a resultar. E estávamos a irritar muita gente, nomeadamente políticos, o que é sempre um bom sinal. E jornalistas também. De repente, os repórteres de guerra estavam a ser ultrapassados na sua função por aquilo que acontecia num espetáculo de entretenimento. Mas só passado muito tempo é que foi possível ter noção do impacto real que as transmissões tiveram. Militares norte-americanos disseram-me que aquelas ligações satélite acabaram por ser mais um empurrão para os EUA entrarem no conflito.

Também levou uma câmara para Sarajevo com o intuito de fazer algumas filmagens para um possível documentário. A edição e a pós-produção desse trabalho foram financiadas pelos U2, algo que acabou por ser o embrião para a canção Miss Sarajevo...

Sim, o Bono perguntou-me se eu já tinha título para o documentário. Respondi-lhe que não, que todas as hipóteses que tinha eram terríveis. Ele então disse-me: "Houve a eleição de uma Miss Sarajevo, não foi? Então é esse o título e eu faço uma canção."

Esteve presente no concurso. De que se recorda?

O mais impressionante para mim foi a quantidade de pessoas que estavam presentes. Tudo aquilo foi surreal tendo em conta as circunstâncias, mas o surrealismo é uma característica da Bósnia.

E o impacto no mundo lá fora?

Foi enorme, mas nós, que estávamos em Sarajevo, não tivemos essa noção. Essa perceção só chegou mais tarde, aos poucos, por ondas. O concurso Miss Sarajevo e as ligações por satélite foram como duas pedras no charco cujas ondas se foram propagando. Tudo isso - tal como o documentário e a canção dos U2 - contribuiu para uma coisa fundamental: humanizar os habitantes.

Foi testemunha de que as pessoas continuaram a tentar, na medida do possível, levar uma vida normal, com momentos de diversão.

Sem dúvida. A primeira vez que durante a guerra me levaram a uma discoteca numa cave foi como se de repente estivesse no meio da Alice no País das Maravilhas. Também fui a exposições de arte e pequenos encontros musicais. É inacreditável a vibração artística que existia na cidade durante a guerra. Era um mundo escondido e era preciso conhecer as pessoas certas para ir aos sítios certos. Essa vibração da cidade não teria sido possível sem o caráter multiétnico e multicultural de Sarajevo.

Muitas pessoas de Sarajevo dizem que nunca se sentiram tão vivos como quando durante a guerra.

Essa é uma espécie de segredo sobre o qual as pessoas de Sarajevo não gostam de falar. É claro que não têm saudade da guerra, mas têm saudade das fortes ligações que se estabeleciam nessa altura. Havia um verdadeiro sentimento de partilha e de entreajuda.

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