Dois níveis de poder e um sistema de saúde frágil. Isto explica o desastre espanhol?
À beira de um milhão de infetados, Espanha é o país da Europa mais afetado pela segunda vaga da pandemia de covid-19, ainda que o Reino Unido e a Itália registem mais mortes. Os motivos para tal acontecer "ainda não são totalmente compreendidos" mas uma coisa é certa: a pandemia veio trazer à luz do dia e até "ampliou" as fragilidades do sistema de saúde. Quem o diz é a prestigiada revista científica The Lancet, que dedica um editorial - "Uma tempestade Previsível?" - à situação espanhola e aponta também o dedo aos políticos, considerando que o problema sanitário permitiu revelar "as complexidades das políticas" do país e a forma como o poder a dois níveis - central e regional - afetam o sistema de saúde.
O número de casos no país supera diariamente os dez mil. Nas últimas 24 horas, disparou para os mais de 13 mil novas infeções, elevando para 921 374 o total de doentes no país - só na última semana foram diagnosticados mais de 61 mil novos casos, segundo dados divulgados este sábado pelo Ministério da Saúde espanhol. Espanha regista um total de 33 553 vítimas mortais, 140 nas últimas 24 horas.
A gravidade da situação tem levado os governos central e autonómicos a imporem cada vez mais restrições à mobilidade dos espanhóis, mas isso também se tem revelado um combate político, com a Comunidade de Madrid a questionar em tribunal as medidas do primeiro-ministro. A The Lancet Public Health faz aliás questão de referir que a "polarização política e gestão descentralizada" existentes no país podem "ter dificultado" uma resposta rápida e eficaz do sistema de saúde.
E deixa a crítica pela voz de Rafael Bengoa, do Instituto de Saúde e Estratégia de Bilbao e ex-ministro da Saúde do País Basco : "Enquanto a primeira onda pode ter sido imprevisível, a segunda onda em algumas partes da Espanha era bastante previsível."
O editorial aponta as fragilidades de um sistema de saúde que tem sofrido com muitos cortes. "Os quatro pilares do sistema de saúde espanhol - governança, financiamento, prestação e força de trabalho - já eram frágeis quando foram esmagados pelo COVID-19 em março. A década de austeridade que se seguiu à crise financeira de 2008 reduziu a força de trabalho na saúde e as capacidades da saúde pública e do sistema de saúde. Os serviços de saúde têm falta de pessoal, poucos recursos e estão sob pressão. Com 5,9 enfermeiras por 1000 habitantes, a Espanha tem um dos índices mais baixos da UE (onde a média é 9,3 por 1000) e muitas vezes depende de contratos temporários que podem durar apenas alguns dias ou semanas."
A pandemia expôs assim - acrescenta o texto - problemas como um sistema de vigilância fraco em todo o país, baixa capacidade para fazer os testes PCR e falta de equipamentos para os profissionais de saúde para os cuidados intensivos. Estas debilidades já tinham sido denunciadas por 20 cientistas espanhóis numa carta enviada à The Lancet em agosto.
Essa carta denunciava igualmente a falta de coordenação e lentidão na tomada de decisões por parte dos dois poderes, o central e os regionais, os altos níveis de mobilidade da população, a escassa assessoria científica, o envelhecimento da população, a saúde e desigualdades sociais e a falta de preparação em lares de idosos.
A revista pega ainda na denúncia já feita por especialistas no que diz respeito à divulgação e tratamento de dados. "Os dados publicados atualmente a nível nacional e regional são insuficientes para entender a dinâmica da epidemia". Pede-se assim que as autoridades forneçam dados abrangentes sobre testes, casos, hospitalizações, admissões em unidades de cuidados intensivos, recuperações e mortes, todos desagregados por idade, sexo e geografia.
"A trilogia teste-rastreio-isolamento, que é a pedra angular da resposta à pandemia, continua fraca", refere a publicação, afirmando que as autoridades estão a tomar medidas para o crescimento alarmante de casos de covid-19, mas que quando se deu o desconfinamento, em junho, "algumas autoridades regionais foram provavelmente muito rápidas na reabertura e muito lentas na implementação de um sistema eficiente de rastreamento".
Apesar de tudo, há motivos para esperança. Os indicadores globais de saúde da população espanhola, como a esperança de vida e expectativa de vida saudável, sugerem que o desempenho do país é superior ao que se poderia esperar tendo em vista os indicadores sociais e demográficos. "Se os líderes políticos de Espanha podem tirar lições da baixa resposta ao covid, o país está muito bem colocado para dar à sua população um futuro brilhante e saudável", pode ler-se.
As medidas restritivas para combater a escalada de infeções que parece incontrolável sucedem-se em todo o país. Este sábado Salamanca anunciou que ficará parcialmente fechada 14 dias a partir de sexta-feira, o que significa que os habitantes da cidade ficam impedidos de entrar e sair, salvo por razões de ordem maior, como trabalhar ou ir ao médico. Aliás, como sucede em algumas cidades da Comunidade de Madrid, incluindo na própria capital.
Várias regiões espanholas têm aplicado medidas sanitárias para lidar contra a pandemia de covid-19, e entre as mais drásticas está o encerramento de bares e restaurantes na Catalunha durante pelo menos 15 dias, a partir deste sábado à noite.
O aumento do número mortes registado em Espanha vai muito para além das que são atribuídas ao novo coronavírus, noticia o El País. Já durante a segunda vaga de covid-19, foram registadas mais 11 mil mortes, comparativamente ao ano anterior, quando as mortes devido ao novo coronavírus são cerca de cinco mil. Estes dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) com base nas informações recolhidas nos registos civis.
Parte desse aumento pode ter sido devido ao calor, mas não parece ser o caso: o Instituto de Saúde Carlos III atribui 1 950 mortes este ano às altas temperaturas, iguais às atribuídas no ano passado, diz o jornal.
Isto significa que os 11 mil óbitos praticamente duplicam o número oficial de mortes devido à covid-19 divulgado pelo Ministério da Saúde (5 400 desde julho).
Entre as explicações para esta disparidade pode estar o facto de as autoridades considerem apenas mortes por covid aquelas em que há um teste a confirmar a infeção. Outra justificação seria que as informações divulgadas pelo Ministério da Saúde são desatualizadas ou incompletas ou ainda que este aumento inclua mortes por outras patologias, que não podem ser atribuídas à covid-19, mas à crise de saúde que o vírus causou.