Das sondagens ao voto por correio: cinco lições da semana eleitoral nos EUA

Os norte-americanos votaram na terça-feira, mas ao contrário do esperado, não sabiam ainda quem seria o próximo presidente dos EUA na manhã seguinte. Ou na seguinte. Ou na seguinte. Com ou sem resultado, eis o que já aprendemos.
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A noite eleitoral nos EUA transformou-se na semana eleitoral e há risco de, com o recurso aos tribunais e as recontagens, se tornar nos meses eleitorais. A corrida para o Senado, por exemplo, só ficará decidida numa segunda volta na Geórgia em janeiro. Mas, mesmo sem resultados finais, já é possível tirar conclusões destas eleições.

Os centros de sondagens não aprenderam nada com o que aconteceu há quatro anos e voltaram a ficar muito aquém do resultado, seja nos estados que já foram declarados, seja nos que estão tão renhidos que tal ainda não foi possível. Mais uma vez não conseguiram perceber o alcance dos apoios de Donald Trump.

Em 2020 não está tanto em causa falhar quem será o vencedor nos diferentes estados (apesar da exceção importante chamada Florida), como aconteceu em 2016 quando Hillary Clinton aparecia como favorita em muitos estados que acabaram nas mãos de Trump, mas a diferença entre os dois candidatos. Joe Biden surgia com margens muito mais confortáveis, que não se confirmaram.

As sondagens falharam particularmente no que diz respeito às eleições para o Senado e para a Câmara dos Representantes, onde era esperada uma "onda azul" que não se concretizou.

No Senado, vários estados republicanos eram dados como estando à mão de semear dos democratas, mas até ao momento só em dois casos (Arizona e Colorado) se confirmou a mudança. E os próprios democratas perderam no Alabama. Na prática, até ao momento, só conquistaram um quando precisavam de conquistar pelo menos três -- num cenário em que Joe Biden conquista a Casa Branca e a vice-presidente Kamala Harris, por inerência presidente deste Senado, é o voto de desempate.

Dos quatro lugares que falta decidir (a corrida está 48-48), dois são dados como quase certos para os republicanos, o Alasca (apesar de o candidato democrata dizer que ainda está na corrida) e a Carolina do Norte. A única opção para os democratas parece ser na Geórgia, onde os dois lugares no Senado estão em jogo. Nas eleições normais, a cada seis anos, o senador republicano David Perdue está à frente do democrata Jon Ossoff, mas a sua percentagem de votos caiu abaixo dos 50%. Neste estado (a outra exceção é o Louisiana), isso implica ir a uma segunda volta em janeiro. Ainda há votos por serem contados e existe matematicamente a hipótese de ele conseguir voltar a subir, mas tal não parece provável.

Quem já sabe que vai para a segunda volta é a outra senadora republicana, Kelly Loeffler, que assumiu interinamente o cargo depois de Johnny Isakson se demitir por motivos de saúde em finais de 2019. O seu adversário será Raphael Warnock, que terá tido cerca de 33% dos votos, frente aos 26% de Loeffler. Nesta corrida não houve primárias dos partidos, razão pela qual os votos foram distribuídos por vários candidatos e que fosse mais improvável um deles chegar aos 50% na primeira volta.

Onde a inexistência de onda azul é mais clara é na corrida na Câmara dos Representantes, onde os democratas devem manter a maioria (ainda falta declarar 31 dos 435 lugares) mas arriscam ficar com a margem mais pequena em 20 anos. Os republicanos que estavam em risco conseguiram ser reeleitos e, além disso, o partido conseguiu conquistar pelo menos seis lugares, segundo as projeções já feitas pela Associated Press.

A vitória de Trump em 2016 foi vista como uma surpresa, alegando-se que se deveu ao facto de os eleitores estarem fartos do establishment político em Washington e de os níveis de rejeição a Hillary Clinton serem tão elevados que isso levava os eleitores a votar nos republicanos. Depois, as sondagens apontavam cada vez mais para uma vitória de Joe Biden, incluindo em estados que são tradicionalmente republicanos, que haveria uma onda azul nos EUA.

Mas Trump conseguiu melhorar o resultado que alcançou em 2016 a nível nacional - de quase 63 milhões de votos para quase 70 milhões, menos quatro milhões que Biden. Razão pela qual o trumpismo e a sua estratégia política (de nacionalismo, misturado com agressividade e espetáculo e total desrespeito pela verdade) não vai desaparecer e procurará manter-se relevante, mesmo se Trump perder, para voltar à carga daqui a quatro anos.

O discurso de "esta não é a América que eu conheço", proferido pelo ex-presidente Barack Obama, num comício a favor de Biden, pode ser agora lido como o afastamento de parte do eleitorado do partido, nomeadamente no que diz respeito à classe trabalhadora e a uma maioria do que são chamados os norte-americanos brancos.

Mas Trump não ganhou só entre caucasianos. No estado fulcral da Florida, onde Biden surgia à frente nas sondagens, foram os latinos que ajudaram a dar a vitória ao presidente. Porque a expressão latinos inclui muitas realidades.

Na Florida, foi um bom resultado entre os cubano-americanos no sul da Florida que ajudou a encurtar a vantagem no condado de Miami-Dade. Para estes eleitores, a posição de Trump contra o regime cubano, assim como a ameaça de um "socialismo" dentro do Partido Democrata são fatores essenciais.

No Texas, que as sondagens também chegaram a colocar como estando à mercê dos democratas, Trump ganhou dezenas de milhares de novos apoiantes entre as comunidades de mexicano-americanos ao longo da fronteira. A mesma fronteira onde defende a construção de um muro e onde, graças à sua política de imigração, separou vários menores dos pais após a entrada ilegal no país. Para muitos, o impacto económico da pandemia terá falado mais alto.

A verdade é que os democratas esperavam que uma alteração demográfica no país, cada vez mais diverso, abrisse as portas a estados que parecem fora do seu alcance. Mas o que estas eleições mostram é que uma coisa não é sinónimo da outra. Ainda assim, Biden terá ganho 63% do voto latino a nível nacional, frente ao 35% de Trump.

Apesar de os norte-americanos terem votado como nunca, não foi apenas o aumento do número de boletins para contar que complicou a situação pós-eleitoral. O problema, nos estados que mantiveram a corrida presa e arrastaram a declaração de um vencedor, é que os responsáveis eleitorais não foram autorizados a começar a contar o voto por correio com antecedência.

Nos estados em que a lei o permite, os resultados chegaram ao final da noite eleitoral, como o normal. É o caso da Florida, onde a lei estadual permite começar a processar esses votos. O processo varia de estado para estado e não é só abrir um envelope e colocar na pilha respetiva. Onde isso não aconteceu, os votos por correio foram deixados para depois dos votos presenciais, o que no caso dos estados do chamado Cinturão da Ferrugem como Pensilvânia, Michigan ou Wisconsin, mas também Geórgia, isso significou uma vantagem inicial dos republicanos - Trump defendeu sempre que o voto por correio não era seguro. À medida que os votos por correio, na sua maioria democratas, foram sendo contados, isso levou Biden a ultrapassar Trump.

O alargar do processo só deu mais argumentos à campanha do republicano para falar em fraude, mesmo sem provas, e para tentar minar os procedimentos.

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