Crise no Brasil. Bolsonaro convoca manife a favor dele próprio e contra o Congresso
Jair Bolsonaro partilhou num grupo de WhatsApp uma convocatória para uma manifestação no dia 15 de março a favor de si mesmo e contra o Congresso Nacional. A situação tem gerado reações fortes, por fazer antever uma crise institucional entre os poderes executivo e legislativo e pelos termos em que é feita.
Em vídeo, com imagens da facada sofrida pelo presidente da República em setembro de 2018 e o hino nacional do Brasil como música de fundo, o texto diz o seguinte: "Ele foi chamado a lutar por nós. Ele comprou a briga por nós. Ele desafiou os poderosos por nós. Ele quase morreu por nós. Ele está enfrentando a esquerda corrupta e sanguinária por nós. Ele sofre mentiras e calúnias por fazer o melhor para nós. Ele é a nossa única esperança de dias cada vez melhores. Ele precisa do nosso apoio nas ruas. Dia 15 de março vamos mostrar a força da família brasileira. Vamos mostrar que apoiamos Bolsonaro e rejeitamos os inimigos do Brasil. Somos sim capazes e temos um presidente trabalhador, incansável, cristão, patriota, capaz, justo, incorruptível. Dia 15 de março todos nas ruas apoiando Bolsonaro."
Assinam a convocatória, além de Bolsonaro, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, com referência às patentes militares de ambos - "Gen. Heleno" e "Cap. Bolsonaro".
Bolsonaro não nega ter feito a partilha, mas considera-a de "cunho pessoal". "Tenho 35 milhões de seguidores nas minhas medias sociais, com notícias não divulgadas por parte da imprensa tradicional. No WhatsApp, algumas dezenas de amigos onde trocamos mensagens de cunho pessoal. Qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República", escreveu.
Como mote para a manifestação estão conflitos entre o governo e o Congresso Nacional do Brasil, país que viveu sob ditadura militar de 1964 a 1985, a propósito de questões orçamentárias - os congressistas insistem em gerir 30 mil milhões de reais dos 80 mil milhões disponíveis para investimento em 2020.
Na semana passada, o general Heleno fora gravado pelo próprio sistema de áudio do Palácio do Planalto numa cerimónia pública a dizer que não aceitava "chantagens do Congresso", terminando com a interjeição "foda-se!", que deu que falar nos dias seguintes.
Ouvido pelo DN, o jurista Miguel Reale Junior, um dos três proponentes do impeachment de Dilma Rousseff, diz que há motivo para pedir a destituição de Bolsonaro com base neste episódio. "Esse vídeo que o presidente partilhou pelo WhatsApp é altamente preocupante porque há um endeusamento da sua figura, colocando-o como o grande salvador do Brasil, colocando os demais políticos como inimigos do país aos quais deve ser proibido o exercício da política porque Bolsonaro é o único que poderá defender os interesses da população."
"Ele confronta-se a si mesmo com os demais poderes constituídos nesse vídeo, nomeadamente o legislativo, ora isto, sem dúvida nenhuma, é contrário ao que está estabelecido no artigo 85.º da Constituição, no qual se diz que constitui hipótese de impeachment a afronta ao exercício dos poderes da República", sublinha.
Segundo a revista Época, o deputado Alexandre Frota, ex-aliado de Bolsonaro, já instruiu os seus advogados para analisarem possibilidade de protocolar pedido de impeachment.
Os antigos presidentes Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso (FHC) foram dos primeiros a reagir à convocação da manifestação. "É uma crise institucional de consequências gravíssimas (...) calar seria concordar. Melhor gritar enquanto se tem voz", escreveu FHC.
Para Lula, "é urgente que o Congresso Nacional, as instituições e a sociedade se posicionem diante de mais esse ataque para defender a democracia". "Bolsonaro e o general Heleno estão provocando manifestações contra a democracia, a Constituição e as instituições, em mais um gesto autoritário de quem agride a liberdade e os direitos todos os dias. É urgente que o Congresso Nacional, as instituições e a sociedade se posicionem diante de mais esse ataque para defender a democracia. O que o Brasil precisa é de gerar empregos, tirar o povo da pobreza. Bolsonaro nunca combinou com democracia. É um falso patriota que entrega a nossa soberania aos Estados Unidos e condena o povo à pobreza. Um falso moralista que acoberta o [assessor do filho Flávio, suspeito de corrupção] Fabrício Queiroz e outros corruptos e criminosos."
O próprio general Santos Cruz, ministro demitido do atual governo em junho por conflito com um dos filhos do presidente, o vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, protestou contra o uso de imagens das forças armadas na convocatória. "É uma irresponsabilidade. O exército brasileiro é uma instituição de Estado, de defesa da pátria e de garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Confundir o exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má-fé, mentir, enganar a população."
O ex-candidato três vezes à presidência e ex-ministro Ciro Gomes considerou "criminoso" incitar a população com "mentiras contra as instituições democráticas" e pediu reação do Congresso. O governador do Maranhão, Flávio Dino, considerado presidenciável no campo da esquerda em 2022, disse que é "extremamente grave que altas autoridades civis e militares estejam apoiando atos políticos contra os poderes legislativo e judiciário".
"Devemos repudiar com veemência qualquer ato que desrespeite as instituições e os pilares democráticos do país. Lamentável o apoio do presidente Jair Bolsonaro a uma manifestação contra o Congresso Nacional", escreveu o governador João Doria na rede social Twitter. O ex-aliado do presidente, com quem rompeu no ano passado, lembrou que "o Brasil lutou muito para resgatar a sua democracia".
Para Celso de Mello, o mais antigo dos juízes do Supremo, esta é a prova de que Bolsonaro "não está à altura do altíssimo cargo que exerce". "A face sombria de um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional, que ignora o sentido fundamental da separação de poderes, que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce e cujo ato de inequívoca hostilidade aos demais poderes da República traduz gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático."
O deputado de oposição Alessandro Molon propôs reunião de emergência entre os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e líderes parlamentares dos partidos para decidir o que fazer diante das manifestações do presidente Jair Bolsonaro contra o Congresso. "Temos de parar Bolsonaro! Basta! As forças democráticas deste país têm de se unir agora. Já! É inadiável uma reunião de forças contra esse poder autoritário. Ou defendemos a democracia agora ou não teremos mais nada para defender em breve", disse Molon.
Para o deputado, "ao não encontrar soluções para o país, ao se sentir sozinho, isolado e frágil, Bolsonaro apela ao que todos temíamos: a um ato autoritário contra a própria democracia. Não dá mais. Esses absurdos, exageros e atropelos têm de parar agora".
Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, a câmara baixa do Congresso, interveio através das redes sociais: "Criar tensão institucional não ajuda o país a evoluir. Somos nós, autoridades, que temos de dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional. O Brasil precisa de paz e responsabilidade para progredir."
Parlamentares aliados do governo, entretanto, partilharam as convocatórias e anunciaram a sua presença nos atos de 15 de março. "O Congresso ficará contra o povo?", questionou a deputada Carla Zambelli, indefetível apoiante do presidente. O pastor Marco Feliciano, outro deputado próximo de Bolsonaro, considerou "normal" convocações de manifestações. Regina Duarte, recém-nomeada secretária da Cultura, partilhou a chamada do presidente.
Já Eduardo Bolsonaro causou controvérsia ao perguntar ''se houvesse uma bomba H no Congresso, você realmente acha que o povo choraria?'', questionou. Ele é deputado federal e, portanto, parte do Congresso.