Bombeiros ligados a ONG presos por atear fogos na Amazónia. Ativistas falam em armadilha

No dia em que Bolsonaro visitou a região, polícia local prende quatro ambientalistas, à revelia das investigações do ministério público. Ambientalistas indignam-se, oposição fala em repressão bolsonarista, governo do Pará afasta delegado do caso.Tribunal Penal Internacional, entretanto, acusa o presidente de promover genocídio de indígenas.
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A polícia civil do estado do Pará, no norte do Brasil, prendeu quatro bombeiros voluntários ligados a uma ONG, acusados de atear fogo em setembro na área de proteção ambiental na estância balnear de Alter do Chão, e cumpriu mandados de busca e apreensão em outras ONG premiadas pelo seu trabalho em prol da Amazónia.

A ação da polícia local surpreendeu o ministério público federal (MPF), cujas investigações sobre a autoria dos incêndios apontavam para "grileiros" (ocupadores ilegais de terras) e especuladores imobiliários da região. Familiares e amigos dos detidos e ativistas brasileiros e internacionais falam em armadilha. Jair Bolsonaro, que na ocasião dos fogos acusara as ONG sem apresentar provas, aproveitou visita ao estado vizinho do Amazonas para comemorar.

"Conheço essa raça e agora a polícia civil do Pará está apontando as queimadas para uma ONG", disse o presidente da República em evento na zona franca de Manaus. Os ministros do ambiente e da educação também partilharam a notícia nas redes sociais em tom efusivo.

Para sustentar as prisões, a polícia do Pará citou conversas telefónicas entre os bombeiros em causa e a World Wide Fund (WWF), uma ONG com sede na Suíça que atua na área da conservação da natureza. Nelas, membros da WWF pedem imagens do fogo para poder acionar os seus patrocinadores, entre os quais o ator Leonardo Di Caprio, e assim ajudar os bombeiros com doações - uma prática considerada comum porque esses patrocinadores condicionam o seu apoio a provas de que o incêndio aconteceu.

Mas para a polícia do Pará essa conversa revela tentativa de obtenção de vantagem financeira dos bombeiros e a prova de que eles atearam o fogo.

Horas mais tarde, o delegado do caso, José Melo Junior, foi afastado do caso. Segundo Helder Barbalho, o governador do Pará, a investigação sobre os incêndios que têm sido registados na região agora será conduzida pelo diretor da delegacia especializada em Meio Ambiente, Waldir Freire.

"O caso requer atenção e toda transparência necessária. Ninguém está acima da lei, mas ao mesmo tempo ninguém pode ser vítima de um pré-julgamento ou ter o seu direito à defesa cerceado", disse o governador.

Daniel Govino, João Romano, Gustavo Fernandes e Marcelo Cwerner estão, por isso, presos preventivamente, por decisão do juiz Alexandre Rizzi, da justiça estadual do Pará. Os seus advogados já entraram com pedido de habeas corpus.

Para o coordenador do Projeto Saúde e Alegria, uma das ONG alvo de busca e apreensão na mesma operação da polícia, "é uma situação kafkiana". "O que nós percebemos é uma ação política para tentar desmoralizar as ONG que atuam na Amazónia", disse Caetano Scannavino ao jornal Folha de S. Paulo.

"Se os bombeiros em causa fossem de facto criminosos deviam ser atores de Hollywood porque nos enganaram a todos", continuou Scannavino, citado pelo jornal britânico The Guardian.

Brigada em choque

A Brigada de Alter do Chão, a que pertencem os quatro bombeiros, diz-se "em choque com a prisão de pessoas que dedicam parte das suas vidas à proteção da comunidade e certos de que qualquer que seja a denúncia ela será esclarecida e a inocência da Brigada e dos seus membros reconhecida".

Um dos advogados dos bombeiros, Wlandre Leal, diz que a detenção é baseada "em suposições" após "pesquisas de Instagram".

O Ministério Público Federal (MPF) do Brasil reagiu e pediu para analisar o processo judicial que trata da prisão dos quatro bombeiros voluntários. Nota do MPF afirma que desde setembro já existia um inquérito sobre o mesmo tema. Na investigação federal, porém, "nenhum elemento apontava para a participação de bombeiros ou organizações da sociedade civil".

Ainda segundo o MPF, ao contrário do que concluiu a polícia local, a linha das investigações federais seguida desde 2015 "aponta para o assédio de grileiros, para ocupação desordenada e para a especulação imobiliária como causas da degradação ambiental em Alter do Chão".

"A região é objeto de cobiça das indústrias turística e imobiliária e sofre pressão de invasores de terras públicas", conclui o MPF.

Em Brasília, deputados da oposição classificaram o caso como "repressão bolsonarista".

Gritos de indignação

Amigos e familiares dos quatro bombeiros inundaram as redes sociais de gritos de indignação com a situação pela qual os detidos estão a passar. Ao DN, Maria Fernanda Ribeiro, prima de Gustavo Fernandes, compara a situação "a um daqueles documentários do Netflix sobre prisões de inocentes". "Vemos na televisão, interessamo-nos por esse tema e de repente acontece na nossa família", continua.

Em texto na rede social Facebook, Maria Fernanda diz que "Gustavo foi quem me apresentou à floresta, foi quem me mostrou o que é ser um guardião, foi quem me mostrou como a nossa vida pode ter valor quando atuamos naquilo em que acreditamos. Gustavo me mostrou o rio Arapiuns e a Flona do Tapajós. Conhece um a um das comunidades ribeirinhas e é amado por essas pessoas, que o recebem com abraços calorosos e alegria porque o "Gustavo chegou"".

"Eu acompanhei de perto o trabalho da brigada de Alter do Chão desde o início do fogo. Vi a emoção desses brigadistas quando o último foco do incêndio chegou ao fim e eles puderam comemorar. Combateram sem roupas nem equipamentos adequados e foi para formar mais brigadistas e condições adequadas de trabalho que eles sempre lutaram. Ter ambientalistas presos, acusados de colocarem fogo na floresta com um governo que já declarou publicamente que as ONG são as culpadas, é um grande troféu para quem insiste em caminhar na escuridão".

O irmão de João Romano conta em vídeo que o bombeiro "deixou uma vida confortável em São Paulo para morar em Alter do Chão numa cabana sem paredes no meio da floresta". "Esses quatro bombeiros voluntários estão sendo vítimas de alguma coisa, nós não sabemos o que aconteceu, mas precisamos de ajuda".

Para Isabel Soares, jornalista portuguesa que morou em São Paulo e conhece Marcelo Cwerner "a detenção é um absurdo". "Era preciso ele ter nascido de novo para que as acusações que lhe fazem terem o mínimo de fundamento. Ele ama a Amazónia, vive lá com a família, filho pequeno, construiu uma maloca com um amigo toda sustentável. É um defensor acérrimo da Amazónia, promove-a e chama atenção para os problemas que lá se vivem, constantemente. A sua atitude é sempre positiva. Sempre de proteção e respeito, tanto pelo ambiente como pelas populações. Jamais conflituosa ou culpabilizadora. Sinceramente? Parece coisa de gente que quer caçar quem protege a Amazónia, eventualmente para desviar atenções dos seus próprios comportamentos em relação ao pulmão do mundo. Lamentável."

Bolsonaro alvo de denúncia no TPI

Em Manaus, entretanto, Bolsonaro voltou a defender, perante uma plateia de empresários e líderes políticos locais, a mineração e a exploração de pedras preciosas em terras indígenas e criticou o alto índice de demarcações na região e a subutilização dessas áreas. "Os índios vivem como homens pré-históricos dentro do nosso país", afirmou.

O presidente da república foi, entretanto, alvo de denúncia no Tribunal Penal Internacional acusado de promover o "genocídio de povos indígenas". A ação foi movida por duas organizações de advogados especializadas em direitos humanos, a Comissão Arns e o Coletivo de Advogados de Direitos Humanos.

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